VOA: Em 1975, Portugal defendeu aos EUA que Angola independente viveria ‘caos’

Novos documentos revelam como Estados Unidos discutiram um apoio à evacuação dos portugueses da então colônia

Este conteúdo foi publicado originalmente pela VOA (Voice of Africa)

Um mês antes da independência de Angola em 1975, o então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Melo Antunes, informou o Presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, que a independência iria resultar no “caos econômico e administrativo” de Angola, revelam documentos publicados pelo Departamento de Estado americano.

Melo Antunes disse que nenhum dos movimentos de libertação angolanos possuía quadros para garantir a estabilidade de Angola, revela a transcrição de uma reunião na Casa Branca entre Melo Antunes, o Presidente Gerald Ford e o então secretário de Estado, Henry Kissinger, que era também Conselheiro de Segurança Nacional de Ford.

Dezenas de documentos referentes às relações entre os Estados Unidos e Portugal, entre Outubro de 1973 e 1976, agora tornados públicos, refletem com efeito a crescente preocupação do Governo americano face à radicalização dos vários Governos portugueses que se sucederam após o golpe de estado de 25 de Abril de 1974, à luz da guerra fria com a União Soviética e as implicações da retirada portuguesa de Angola nessa luta por influências entre as duas potências mundiais.

O então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, em registro de abril de 1975 (Foto: Domínio Público)

Neste contexto, as reuniões ao mais alto nível indicam como a independência de Angola torna-se não só um fator de preocupação para as autoridades americanas, mas também um instrumento de pressão em redor da questão da retirada de Angola de centenas de milhares de cidadãos portugueses, os chamados “retornados”, sobre os quais os dirigentes americanos chegam mesmo a discutir se o regresso desses portugueses iria favorecer forças anti-comunistas em Portugal ou se seria melhor permanecerem em Angola.

A ajuda ao regresso dos portugueses é também usada para tentar forçar os militares portugueses a deixarem de ajudar o MPLA, indicam os documentos que confirmam que, mesmo antes da proclamação da independência, navios carregados de material bélico soviético para o MPLA chegavam a Angola perante a passividade das autoridades portuguesas.

“Savimbi é mais inteligente, Neto é casmurro”

Um mês antes da independência de Angola, Melo Antunes deslocou-se à Casa Branca, a 10 de Outubro de 1975, para uma reunião em que o Presidente Ford pediu ao ministro português uma avaliação dos dirigentes angolanos, começando por perguntar se era sua opinião que Agostinho Neto era comunista.

“É muito próximo disso embora seja difícil classificá-lo como um comunista ortodoxo”, respondeu Melo Antunes, acrescentando “estamos bem cientes do apoio que tem recebido da União Soviética e de outros países socialistas, mas principalmente da União Soviética”.

Interrogado sobre os dirigentes dos três movimentos de libertação, o então ministro dos Negócios Estrangeiros português disse que o fundador e líder da FNLA, Holden Roberto, “não tem um fundo político muito sólido”.

“É facilmente corrompível e dependente de Mobutu”, afirmou em referência ao antigo Presidente do Zaire (agora República Democrática do Congo) onde Roberto se encontrava.

Dos três dirigentes, sublinhou Melo Antunes, “(Jonas) Savimbi é o mais inteligente, o mais capaz e o mais forte politicamente”, embora “alguns ponham em causa o seu senso político”.

“Tem jogado em todos os lados e mudou de apoiantes estrangeiros, e penso que irá acabar por perder popularidade devido a estas ações, mas de momento tem apoio considerável do Zaire e Zâmbia, enquanto (Agostinho) Neto (presidente do MPLA) devido à sua casmurrice perdeu algum apoio”, acrescentou.

O Presidente Ford quis depois saber de Melo Antunes qual a opinião dele sobre o futuro de Angola, tendo em conta a saída dos portugueses e perguntou se “com os refugiados a saírem (os movimentos de libertação) têm capacidade para governar a economia?”

“Pelo que sei de Angola – e estou familiarizado com isso em profundidade – vamos ver o caos económico e administrativo”, respondeu o então ministro português.

O então presidente dos EUA Ronald Reagan e o líder angolano Jonas Savimbi, em encontro na Casa Branca em janeiro de 1986 (Foto: Casa Branca/Domínio Público)

“Não têm os números necessários para mantê-lo”, acrescentou Melo Antunes, quem avisou também o Presidente americano existir a possibilidade de Cabinda se separar de Angola com apoio do Zaire e do Congo Brazzaville (hoje, respectivamente, República Democrática do Congo e Congo).

Isso, disse Melo Antunes teria “graves consequências” para Angola “devido ao seu valor econômico”.

Os retornados e a ajuda portuguesa ao MPLA

Um mês antes dessa reunião, num encontro de alto nível em Washington, Henry Kissinger, o então embaixador dos Estados Unidos em Portugal Frank Carlucci e, entre outros, William Hyland, director de Inteligência e Investigação, e Arthur Hartman, secretário de Estados Assistente para Assuntos Europeus, discutiram a situação em Portugal, onde a luta entre diversas facções do Movimento das Forças Armadas se agudizava.

Na altura, Kissinger afirma que não concordará em aumentar os voos americanos para evacuação dos portugueses “até termos um melhor entendimento com os portugueses sobre Angola do que temos agora”.

A transcrição do que foi dito nessa reunião revela uma tensão entre Carlucci e Kissinger sobre o papel de Portugal em Angola e ainda diferentes opiniões em torno do impacto dos “retornados” para a política americana em relação a Portugal.

“Eu quero que os portugueses compreendam que estamos contra o papel que estão a jogar ali e particularmente no que diz respeito à sua ajuda ao MPLA”, disse Kissinger.

O embaixador Carlucci tenta defender as autoridades portuguesas afirmando que o então Presidente Costa Gomes tinha contactado os Estados Unidos sobre a questão de Angola e “nós nunca respondemos”.

“Basicamente estavam a pedir-nos para segurar Mobutu”, afirma Carlucci em referência ao Presidente do então Zaire, acrescentando que as autoridades portuguesas “afirmam seguir uma política de neutralidade estrita”.

Kissinger responde então que “temos informações que indicam o contrário, envolvendo operações militares no terreno em Angola, em que os portugueses aconselham o MPLA sobre que estradas a seguir, etc”.

“O facto é que o MPLA passou de ser a terceira força mais forte em Angola para a mais forte hoje, alguém teve que os ajudar a conseguir isso”, acrescenta Kissinger, ao que o embaixador Carlucci diz não se opor a discutir isso com as autoridades portuguesas desde que “tenhamos a certeza” dos factos, lembrando que “o objetivo prioritário dos portugueses é sair”.

Kissinger afirma em resposta que não quer que Portugal faça “pender a balança para o lado do MPLA e é isso que estão a fazer”.

Carlucci argumenta que se isso está a acontecer será “por omissão” e não propositadamente com “acções especificas” ao que Arthur Hatman interrompe afirmando: “Bem, obviamente, navios não podem estar a descarregar equipamento militar em Angola, como carros blindados sem os portugueses saberem o que se passa”.

Quando o embaixador Carlucci afirma que “temos que ser realistas sobre isto” é interrompido por Kissinger: “Estamos a ser realistas. Não vamos avançar mais com a ponte aérea se não mostrarem cooperação”.

Hartman sugere então que a suspensão dessa ajuda à evacuação dos portugueses poderá não ser de benefício para os interesses americanos em Portugal pois “vão regressar a Portugal enraivecidos contra o MPLA e por isso, nesse caso, queremos que voltem a Portugal”.

Kissinger responde então que o regresso dos portugueses “é obviamente útil em Portugal, mas em Angola podem também ser úteis devido às suas atitudes em relação ao MPLA e FNLA”.

Quando Carlucci afirma que Hartman “tem um bom argumento” Kissinger volta a interromper: “Repito: O seu regresso ajuda-nos em Portugal mas pode prejudicar-nos em Angola”.

O então secretário de Estado diz que os Estados Unidos “não estão a pedir aos portugueses para expulsarem o MPLA”.

Trânsito na capital angolana, Luanda; em registro de 2010 (Foto: Wikimedia Commons)

“Queremos três coisas dos portugueses: Queremos que sejam genuinamente neutros como dizem que são; queremos que não aceitem como estão a fazer agora o fornecimento de armas ao MPLA; e queremos que deixem de pressionar Savimbi para chegar a um acordo com o MPLA em qualquer tipo de coligação. Queremos que isso seja reflectido na sua política até 11 de Novembro”, resume Kissinger.

“Temos cerca de oito semanas até a situação se tornar irreversível”, avisa o então chefe da diplomacia americana que, noutro momento, insiste que os Estados Unidos querem “algumas garantias concretas sobre o que estão a fazer quanto à entrega de armas soviéticas e queremos saber o que estão a fazer sobre as pressões a serem exercidas sobre Savimbi”.

Noutro passo da reunião, Kissinger pergunta a Carlucci “o que é que Coutinho anda a fazer?”, numa referência ao almirante Rosa Coutinho tido como um defensor dos interesses do MPLA dentro do Governo português.

“Neste momento muito pouco”, responde Carlucci.

O acordo de ajuda

Já depois da visita de Melo Antunes à Casa Branca, o Conselho Nacional de Segurança elaborou um memorando em que se revela uma ajuda americana de 35 milhões de dólares para ajuda e recolocação de refugiados idos de Angola e cerca de 20 milhões de dólares em ajuda económica a longo prazo a Portugal.

O documento revela que ficou acordado “aumentar o nosso transporte aéreo de refugiados angolanos de 500 para mil evacuações por dia” e acrescenta que desde 7 de Setembro desse ano os Estados Unidos tinham evacuado aproximadamente 13 mil refugiados de Angola.

O memorando indica que “uma grande preocupação dos Estados Unidos é que na sua pressa (de sair de Angola) Portugal irá retirar as suas tropas e deixar quantidades significativas de equipamento e material militar a maior parte do qual poderá cair nas mãos do Movimento Popular”.

“Tornamos claro ao Governo português que o nosso acordo para duplicar a nossa ponte aérea depende das garantias que o Movimento Popular não ficará em posse do equipamento militar português atualmente em Angola”, reafirma o memorando.

Refira-se que alguns documentos contêm nomes rasurados para esconder a identidade de contatos e fontes de informação dos Estados Unidos.

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