Pesquisadores argentinos se revoltam após eleição de presidente anticientífico

Javier Milei prometeu reduzir o financiamento em pesquisa e fechar agências científicas como parte de seu plano para enfrentar a crise econômica do país

Este conteúdo foi publicado originalmente em inglês no site da revista Nature

Por Martin De Ambrósio* e Fermín Koop**

A Argentina pode estar entrando em uma nova era. Após uma eleição de segundo turno no domingo (19), o candidato libertário Javier Milei foi eleito presidente, obtendo 56% dos votos. Desde que o país se tornou uma democracia em 1983, tem sido governado predominantemente por vários tipos de líderes peronistas – políticos que se referem principalmente ao movimento populista iniciado pelo ex-presidente Juan Perón, que enfatiza a justiça social e os direitos dos trabalhadores. Mas o candidato peronista, o atual ministro da Economia, Sergio Massa, tem sido atormentado por uma crise financeira e não prevaleceu nas últimas eleições.

O resultado traz muita incerteza para a comunidade científica argentina. Milei e outros membros de seu partido, La Libertad Avanza, comprometeram-se a fechar ou possivelmente privatizar a principal agência científica do país, o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet), bem como a eliminar os ministérios da Saúde, Ciência e Meio Ambiente.

Javier Milei (Foto: World Economic Forum/Flickr)

O Conicet, que financia cerca de 12 mil pesquisadores em 300 instituições argentinas, com um orçamento anual de cerca de 80 bilhões de pesos (400 milhões de dólares), é uma das instituições científicas mais proeminentes da América Latina. Antes da eleição, os diretores dos 16 centros de pesquisa do Conicet afirmaram em comunicado conjunto que “não é anulando o Estado que se alcançará um país melhor”. Muitos cientistas no país apoiaram Massa ou pediram que outros não votassem em Milei. Eles também organizaram manifestações contra Milei.

“Com base nas promessas e declarações feitas durante a campanha presidencial, a situação agora parece extremamente preocupante”, diz Sandra Díaz, pesquisadora ambiental do Instituto Multidisciplinar de Biologia Vegetal da Universidade Nacional de Córdoba, que recebe financiamento do Conicet. “A comunidade científica provavelmente terá que mostrar, mais uma vez, toda a sua resiliência e determinação.”

Fora da Argentina, os pesquisadores também expressaram oposição às ideias de Milei antes das eleições. Por exemplo, a Rede Interamericana de Academias de Ciências, que tem membros de países que vão do Canadá e Estados Unidos à Argentina e Chile, emitiu um documento que dizia que “a ciência não é um gasto, mas sim um investimento”, e acrescentou que o Conicet e a pesquisa “dão soluções diretas para os problemas do país”.

O triunfo de Milei “não é uma boa notícia para a ciência, a educação pública, as universidades, a cultura, o meio ambiente e os direitos humanos na Argentina”, diz Alberto Kornblihtt, biólogo molecular do Instituto de Fisiologia, Biologia Molecular e Neurociências da Universidade de Buenos Aires, que recebe financiamento do Conicet.

Um recém-chegado à política

Milei – anteriormente consultor econômico de empresas como o HSBC, um grupo bancário com sede em Londres – é relativamente novo na política argentina, tornando-se legislador na câmara baixa do Congresso do país em 2021. Milei é frequentemente comparado a líderes conservadores como o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, e se autoproclamou um admirador da ex-primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher.

Respondendo à elevada taxa de inflação do país (mais de 140%) e à dívida multibilionária com o Fundo Monetário Internacional (FMI), Milei prometeu cortar despesas governamentais equivalentes a 15% do produto interno bruto da Argentina. A Argentina tem a terceira maior economia da América Latina. Milei tem discutido se também abolirá os sistemas de saúde pública e educacional do país.

No primeiro turno das eleições, em 22 de outubro, Massa obteve 37% dos votos e Milei apenas 30%. Mas Patricia Bullrich, outra candidata conservadora que é ex-ministra da Segurança e que obteve 24% dos votos, posteriormente apoiou Milei. Isto, somado ao profundo descontentamento com a crise econômica, abriu a porta para a vitória de Milei.

Os cientistas reconhecem que o país está numa profunda turbulência econômica, mas dizem que investir na ciência e na investigação é uma das melhores soluções possíveis.

“É importante que as autoridades eleitas tomem consciência de que a ciência e a tecnologia devem ser uma política de Estado”, afirma Gabriel Rabinovich, bioquímico do Instituto de Medicina Experimental e Biologia de Buenos Aires, que recebe financiamento do Conicet. A Argentina não precisa depender da importação ou do avanço de tecnologias de países mais ricos, diz Rabinovich. “Temos o talento humano e o poder para desenvolver [nós mesmos] ciência inovadora que impacte o conhecimento universal.”

‘Um grande revés’

Milei também chamou a mudança climática de uma “farsa socialista”, comentários que suscitaram preocupação na comunidade científica. “A sua posição é típica de um negacionista”, diz Matilde Rusticucci, cientista atmosférica da Universidade de Buenos Aires, que desde 2004 é coautora das avaliações climáticas globais publicadas pelo Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas. Milei disse que as empresas deveriam poder poluir os rios “tanto quanto quiserem”, e outros membros do La Libertad Avanza apoiaram a privatização dos mares – sugerindo que as espécies ameaçadas podem ser protegidas como o gado, através de cercas.

Milei “está negando o valor da ciência, negando o valor do meio ambiente, negando as mudanças climáticas”, diz Rusticucci. “O governo dele será um grande revés para toda a comunidade científica, por todos os avanços que estão sendo feitos, que exigiram muito esforço.”

“Os esforços nacionais em matéria de alterações climáticas provavelmente serão interrompidos”, prevê Pilar Bueno, que estuda relações internacionais e negociações climáticas na Universidade de Rosário, na Argentina, financiada pelo Conicet. “Uma política climática que também traga oportunidades de negócios ainda pode ser considerada” por Milei, diz ela. “No entanto, vê-lo apenas como uma oportunidade de negócio sem as devidas salvaguardas poderá gerar muitos efeitos negativos.”

Resta saber quantas ideias de Milei serão postas em prática. Ele tomará posse em 10 de dezembro.

*Jornalista científico
**Jornalista e especialista em meio ambiente e mudanças climáticas

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