Aliados históricos, Taleban e Paquistão estão cada vez mais distantes

Denúncias de que o Afeganistão dá abrigo a terroristas internacionais irritam Islamabad e prejudicam a parceria com os radicais

O governo do Paquistão foi durante muitos anos o principal aliado internacional do Taleban, inclusive com denúncias de que Islamabad patrocinou os radicais durante o período de ocupação estrangeira no Afeganistão. Entretanto, desde que assumiram o governo afegão, em agosto de 2021, os talibãs têm se afastado cada vez mais do parceiro histórico, sobretudo em virtude das denúncias ocidentais de que terroristas internacionais recebem abrigo em território afegão. As informações são da rede Gandhara.

Um episódio recente escancarou as divergências. No dia 23 de setembro, o primeiro-ministro paquistanês Shehbaz Sharif se manifestou sobre o problema na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), dizendo que Islamabad “compartilha a principal preocupação da comunidade internacional em relação à ameaça representada por grandes grupos terroristas que operam a partir do Afeganistão”.

Antes daquilo, no dia 14, o governo paquistanês havia acusado o Taleban de fornecer abrigo a Masood Azhar, fundador e chefe do grupo extremista Jaish-e Mohammad (JEM). Trata-se de uma organização com sede no Paquistão que luta pela independência da Caxemira da Índia e que há 20 anos está banida pelo governo paquistanês, tendo realizado inúmeros ataques mortíferos nos últimos anos.

Integrantes do Taleban no Afeganistão (Foto: Wikimedia Commons)

Além do JEM, Sharif citou outros grupos terroristas que encontram receptividade entre os talibãs, como o Estado Islâmico-Khorasan (EI-K), o Tehrik-e Taliban Pakistan (TTP), popularmente conhecido como Taleban do Paquistã, e a Al-Qaeda.

A própria ONU já havia alertado para o problema, em relatório divulgado no final de maio deste ano. “As avaliações dos Estados-Membros até agora sugerem que a Al-Qaeda tem um porto seguro sob o Taleban e maior liberdade de ação”, dizia o documento. “A Al-Qaeda permanece no sul e leste do Afeganistão, onde tem uma presença histórica. O grupo supostamente tem de 180 a 400 combatentes, com as estimativas dos Estados-Membros inclinando-se para o número mais baixo”.

O ex-líder da organização Ayman al-Zawahri, inclusive, foi morto em território afegão em um ataque das forças armadas dos EUA no dia 1º de agosto. Antes disso, a ONU havia dito que a Al-Qaeda parabenizou publicamente os talibãs pela ascensão ao poder. E alegou que um filho de Osama Bin Laden, Abdallah, visitou o Afeganistão em outubro de 2021 para reuniões com o Taleban.

O Taleban refuta as acusações, que pesam contra os planos do grupo de obter reconhecimento global como governo de direito do Afeganistão. Os radicais se irritaram ainda mais com a adesão do Paquistão à causa, acusando os aliados históricos de “receber milhões de dólares” dos EUA para adotar tal postura.

Em agosto, o Taleban inclusive acusou o Paquistão de permitir que as forças armadas norte-americanas usassem drones para realizar ataques no Afeganistão. Uma dessas operações teria sido justamente a que matou al-Zawahiri, embora os talibãs amais tenham admitido que ele vivia no em território afegão.

O Taleban do Paquistão

O principal foco de desavença entre Taleban e Islamabad é a relação próxima entre os radicais afegãos e o TTP, que trava uma antiga disputa com o governo paquistanês. Embora sigam os mesmos preceitos fundamentalistas e sejam ambos grupos sunitas, os dois Talebans são entidades separadas que apenas mantêm um bom relacionamento.

Inclusive, o governo do Paquistão aproveitou sua proximidade com os talibãs do Afeganistão para iniciar negociações com o TTP, com quem chegou a firmar dois acordos de cessar-fogo.

O primeiro pacto ocorreu no ano passado, mas foi interrompido no dia 10 de dezembro, exatamente um mês após ter sido iniciado. Os extremistas do TTP acusaram Islamabad de não cumprir as promessas feitas antes do acordo, entre elas a libertação de prisioneiros e a formação de um comitê de negociações.

À época em que aquele cessar-fogo foi estabelecido, o ministro da Informação paquistanês, Fawad Chaudhry, confirmou a influência do Taleban do Afeganistão para que o acerto fosse possível.

Recentemente, Paquistão e TTP negociaram um novo cessar-fogo, mas o processo foi interrompido mais uma vez. Desde então, agentes das forças de segurança do governo paquistanês e civis voltaram a ser alvo de ataques do grupo radical.

Segundo Husain Haqqani, ex-embaixador do Paquistão nos Estados Unidos e hoje a serviço do think tank Instituto Hudson, com sede em Washington DC, os próprios talibãs não têm mais a pretensão de manter uma relação tão próxima com o país vizinho. “O Taleban pode ter aceitado o apoio paquistanês há anos, mas não deseja ser um representante paquistanês para sempre”, disse ele.

Por que isso importa?

A proximidade entre Islamabad e o Taleban sempre incomodou o Ocidente. Depois que os radicais conquistaram Cabul, consequentemente assumindo o governo do Afeganistão, o então premiê paquistanês Imran Khan declarou que o grupo estava “quebrando as correntes da escravidão”, em vídeo reproduzido pelo jornal britânico The Independent.

Segundo o think tank norte-americano CFR (Conselho de Relações Estrangeiras, da sigla em inglês), uma forte razão para a proximidade entre Paquistão e Taleban é a questão territorial. “As autoridades paquistanesas estão preocupadas com a fronteira com o Afeganistão e acreditam que um governo do Taleban poderia aliviar suas preocupações”, diz a entidade, que destaca a disputa histórica entre os paquistaneses e a etnia pashtun do Afeganistão. “O governo do Paquistão acredita que a ideologia do Taleban enfatiza o Islamismo em vez da identidade pashtun”.

Nos EUA, sempre foram comuns as acusações de que o governo paquistanês não apenas dialoga com os talibãs afegãos, mas também os apoia e dá suporte. Segundo especialistas, o ISI, serviço de inteligência paquistanês, apoiou grupos militantes na região da Caxemira, disputada entre Paquistão e Índia. Entre eles, grupos que hoje figuram na lista de organizações terroristas do Departamento de Estado norte-americano, como o JEM.

O CFR ilustra essa desconfiança com uma entrevista do então secretário de Defesa dos Estados Unidos Robert Gates, concedida ao programa 60 Minutes, da rede CBS, em maio de 2009. Na ocasião, ele disse que “até certo ponto, eles jogam dos dois lados”, referindo-se ao ISI e ao Taleban.

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