Relatório aponta crimes e irregularidades jurídicas por parte de Moscou na Crimeia

Entre as falhas em julgamentos, a mais comum é a de testemunhas anônimas usadas pela acusação

Um relatório publicado pelo OHCHR (Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, da sigla em inglês) na quinta-feira (2) revela casos de tortura e desaparecimentos forçados atribuídos ao governo russo, bem como uma série de irregularidades jurídicas cometidas em casos julgados por tribunais da região anexada da Crimeia.

Entre as irregularidades, a mais comum é a de testemunhas anônimas usadas pela acusação. “Em um caso, o réu foi condenado com base no depoimento de uma testemunha anônima que não compareceu ao tribunal e a quem a defesa não foi capaz de questionar em qualquer fase do processo”, diz o documento. “A corte admitiu o depoimento escrito como prova sem verificar se a pessoa existia e se o depoimento prestado era voluntário e genuíno”.

Agentes da FSB, a agência de segurança federal da Rússia (Foto: Wikimedia Commons)

O relatório cita nominalmente a FSB (Agência de Segurança Federal, da sigla em inglês) russa como responsável por muitas das irregularidades. Há casos, por exemplo, de depoimentos incriminatórios colhidos por agentes e de amostras de DNA retiradas dos acusados antes que esses pudessem consultar os advogados. “O acesso era geralmente negado por períodos entre 3 e 17 horas. Em um exemplo extremo, a vítima não teve permissão para se encontrar com seus advogados contratados em particular até o vigésimo oitavo dia de sua detenção”, diz o texto.

Os condenados ainda costumavam sofrer um novo abuso após o veredito. Em 28 casos, os réus foram forçados a cumprir pena em regiões distantes da Rússia. “As longas distâncias e os altos custos de viagem da Crimeia para a Federação Russa tornam as visitas familiares excessivamente difíceis, o que prejudica o direito dos detidos ao respeito por sua vida privada e familiar”.

Desaparecimentos e tortura

Há ainda casos extremos, de desaparecimentos forçados até hoje não solucionados. O documento cita 43 pessoas, sendo 39 homens e 4 mulheres, que sumiram na Crimeia desde março de 2014: “Onze homens continuam desaparecidos, um homem teria sido sumariamente executado após o desaparecimento, um homem permanece em um local oficial de detenção e 30 vítimas foram libertadas, mas sem qualquer reparação”.

Torturas também são habituais. Em um caso emblemático, oficiais da FSB submeteram um jornalista, acusado de posse ilegal de explosivos, a eletrocução e violência sexual, a fim de obterem uma “confissão” de sua cooperação com agências de inteligência da Ucrânia. Posteriormente, a televisão estatal mostrou uma entrevista na qual a vítima repetiu sua confissão forçada. “Durante a audiência de fiança, o juiz indeferiu a denúncia de tortura da vítima, sem ordenar uma investigação, afirmando que ia além do objeto da audiência”.

O relatório destaca, ainda, que nenhum dos autores desses crimes foi condenado até hoje, mesmo nos casos mais antigos, que já completaram sete anos. Alguns agentes chegaram a ser investigados, mas os casos foram arquivados antes de um eventual julgamento.

Por que isso importa?

As tensões na Crimeia explodiram depois que o então presidente da Ucrânia Viktor Yanukovych, no final de 2013, se recusou a assinar um acordo que estreitaria as relações do país com a UE. A decisão, explicada pela forte influência da Rússia sobre o presidente, levou a protestos em massa, que culminaram com a fuga de Yanukovych para Moscou em fevereiro de 2014.

tensão se intensificou na região após a fuga do presidente, e grupos pró-Rússia aproveitaram o vazio no governo nacional para assumir o comando da península e declarar sua independência. Então, em março de 2014, as autoridades locais realizaram um referendo sobre a “reunificação” da Crimeia com a Rússia. A aprovação foi superior a 90%.

Após o referendo, considerado ilegal pela ONU (Organização das Nações Unidas), a Crimeia passou a se considerar território da Rússia. Entre outros, adotou o rublo russo como moeda e mudou o código dos telefones para o da Rússia.

Apenas nove países tratam a Crimeia como parte da Rússia: Zimbábue, Venezuela, Síria, Nicarágua, Sudão, Belarus, Armênia, Coreia do Norte e Bolívia. Para a comunidade internacional, trata-se de um território ucraniano sob ocupação russa.

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