Brasileiros ‘cancelam’ a Rússia após ataque à Ucrânia

Embora o Planalto não tenha aderido à onda global de sanções a Moscou, empresários de diferentes setores e a internet não pouparam boicotes aos russos, alguns um tanto inusitados

Por André Amaral

Numa linguagem direta e contemporânea, a Rússia foi ”cancelada”. O fenômeno, que ocorre geralmente na internet, quando uma pessoa pública diz algo indevido ou tem comportamento questionável, mostrou sua versão geopolítica em 2022. Desde que iniciou uma invasão em larga escala à Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, o presidente Vladimir Putin tem visto seu país ser duramente contra-atacado por uma campanha global de apoio a Kiev. E isso, perigosa e inevitavelmente, parece avançar para a xenofobia, com reflexos no Brasil.

Do futebol ao sistema de pagamentos internacional, as represálias ocorreram em nível diplomático, econômico e até cultural – respingando inclusive no escritor Fiódor Dostoiévski, já que as medidas também atingiram o “soft power” russo, resultando em um boicote que chegou à vasta produção artística da antiga nação soviética. À medida que as tropas bombardeiam cidades e expulsam pessoas de suas casas, novos pacotes de sanções recaem sobre os agressores. Crime (de guerra) e castigo: nem a vodka e um conhecidíssimo prato facilmente encontrado nos lares brasileiros escaparam dos protestos.

Brasília se manifestou contrária à aplicação de sanções a Moscou durante encontro de diplomatas brasileiros e americanos em Washington há duas semanas. O Itamaraty argumentou que a economia mundial sofreria um “desarranjo”, causando grande impacto em solo brasileiro, como mostrou reportagem da rede CNN. Já o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, na última quinta-feira (24), avaliou as penalidades unilaterais como “seletivas” e “ilegais perante o direito internacional”.

Estrogonofe, o mais brasileiro dos pratos russos, virou um personagem político em meio ao conflito na Ucrânia (Foto: Pixabay/Divulgação)

Mas se a diplomacia brasileira é favorável a manter a cordialidade com a Rússia, parte da sociedade civil, sobretudo através da internet, reagiu de forma diferente à violação da soberania ucraniana – sendo em alguns momentos de maneira exagerada ou simplesmente anódina. Com sabor de boicote cultural, teve até restaurante de São Paulo excluindo o estrogonofe do cardápio, caso do Bar da Dona Onça, estátua de Putin retirada de atração turística na cidade de Gramado e palestra sobre Dostoiévski cancelada. Sem falar, evidentemente, nos inúmeros memes e reações contrárias ao regime autocrata no Kremlin nas redes sociais.

A Agência Brasil abordou que tais manifestações contra a cultura russa têm extrapolado o contexto da guerra no Leste Europeu. O veículo de mídia estatal brasileiro ouviu o advogado paulista Danilo Kozemekin, neto de russos, que tem observado um aumento crescente de ataques racistas. Ele conta que foi criado pelos avós e compartilha valores e práticas da comunidade russa, sobretudo em torno da convivência na igreja ortodoxa.

“O que mais me assusta e me deixa bem triste é que as ameaças começaram nas igrejas”, relata Danilo, acrescentando que foram deixadas mensagens na sua caixa postal com referências nazistas. “Diziam que nós merecíamos ter morrido na Segunda Guerra Mundial”.

Ele acrescentou que o que classifica como “russofobia” não é nenhuma novidade, sendo algo há muito explorado na cultura pop norte-americana, particularmente por conta de um conflito histórico de sua terra ancestral com o Ocidente.

“Por exemplo, o russo sempre é o mau, o vilão”, exemplifica referindo-se aos filmes, sobretudo do período da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a Rússia.

Politização inusitada

Mais de 11 mil quilômetros separam São Paulo de Kiev. Longe do front, na segurança do Itaim, conhecido e badalado reduto da noite paulistana, o sofisticado universo da coquetelaria também escolheu seu lado e vestiu amarelo e azul. O Levels Lounge Bar cancelou o tradicional drink da canequinha de cobre que leva o nome da capital russa. Por lá, o Moscow Mule – uma mistura de vodca, gengibre e limão – passou por um “rebranding” e agora se chama “Kiev Mule“.

Já em Gramado, na serra gaúcha, o Museu de Cera Dreamland optou por retirar a reprodução de uma de suas tantas lideranças políticas mundiais lá homenageadas. De acordo com o gerente comercial do grupo, Elodir Correa, a saída do boneco do líder russo não tem motivação política, tendo ocorrido para “dar uma melhor experiência ao visitante que procura a atração para se divertir”.

A sétima arte também protestou. A 8ª edição da Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, que aconteceria no dia 10 de março, organizada pelo Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES), cancelou provisoriamente o evento. Um dos filmes exibidos seria ‘A infância de Ivan‘, do proeminente cineasta Andrei Tarkovsky. A obra retrata a Segunda Guerra Mundial no contexto da invasão alemã ao território soviético.

Tarkovsky, que em filmes como ‘Solaris’ abordou a burocracia autoritária do regime soviético, teria obra presente em mostra cinematográfica adiada (Foto: Flickr/Divulgação)

A esmalteria Nord Nails, em Brasília, de propriedade de duas cidadãs russas, Elina Zhabrailova Porto e Anastasia Kozhukhovskaya, também manifestou publicamente seu repúdio à guerra. O salão de beleza é pioneiro no Brasil na cutilagem russa, uma técnica contemporânea usada para aparar cutículas sem o uso de alicates. O empreendimento pediu paz e instou as clientes a buscarem informações confiáveis sobre o que está acontecendo na terra natal das empresárias.

No campo político, Fernando Holiday, vereador em São Paulo pelo partido Novo, apresentou proposta de alteração de nomes de duas vias do bairro de Jardins. Segundo o projeto, a Rua Rússia passaria a se chamar “Rua Ucrânia” e a Avenida Lineu de Paula Machado, onde fica a sede do consulado russo, mudaria para “Avenida dos Heróis Ucranianos”.

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