Cidadãos russos perseguem ativistas antiguerra e contam com a conivência da polícia

Ataques com tinta, ameaças online e pichações contra críticos do conflito na Ucrânia sequer são investigados, segundo ONG

Não é apenas a repressão estatal que afugenta os russos que se opõem à guerra. Têm se tornado comuns na Rússia os casos de pessoas assediadas ou mesmo agredidas por outros cidadãos pelo simples fato de contestarem a invasão da Ucrânia ou demais ações de Vladimir Putin. E, nesses casos, as autoridades locais fazem vista grossa, vez que os agressores são tidos como aliados do Kremlin. As informações são da ONG OVD-Info, que monitora a repressão política no país.

Foram apurados 93 casos de repressão não estatal ligadas ao posicionamento antiguerra das vítimas. São 14 ataques diretos, 22 ameaças e 57 episódios de propriedade danificada, geralmente paredes ou portas pintadas. “Os analistas da OVD-Info estão preparando um relatório para o Comitê de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) com uma análise detalhada de tendências”, diz a ONG.

Detido pela polícia durante um protesto antiguerra em São Petesburgo, Mikhail Baranov não precisou lidar somente com o risco de ser preso ou multado pela Justiça russa. Teve que enfrentar também a fúria de civis que o enxergam como traidor.

Ele conta que, em certa ocasião, seguia em direção ao carro para fazer compras quando foi surpreendido por um indivíduo que o encharcou de tinta verde “Gritei, tentei chamar a atenção, mas tudo aconteceu tão rápido que nem tive tempo de ver, ele desapareceu”, diz o homem agredido.

Ele chamou a polícia, e a resposta foi rápida. Mas os próprios agentes de segurança formularam uma teoria para o ocorrido: o autor da agressão poderia ter sido o marido de uma ex-namorada ou mesmo um amante da mulher dele.

Dmitry Muratov, Nobel da Paz e editor-chefe do Novaya Gazeta (Foto: Michał Siergiejevicz/Flickr)

Além do episódio com tinta, ele diz que teve a porta de casa pichada com a palavra “traidor”. Também sofreu insultos e ameaças no Instagram. Um mês após denunciar o ocorrido, Baranov teve uma resposta da polícia: “Não foi possível localizar testemunhas do que aconteceu”, tanto no caso da tinta quanto da pichação na porta. A presença no protesto antiguerra, ao contrário, rendeu ao homem uma multa de 20 mil rublos (R$ 1,74 mil).

Kirill Sukhorukov, um ativista de Kaliningrado, também encontrou manifestações raivosas na porta de seu apartamento. Lá, foram pichadas as letras V e Z, símbolos russos de apoio à guerra, uma coroa de flores do tipo que se envia a velórios e duas fotos dele com uma cruz vermelha pintada sobre o rosto.

Por sua vez, Oleg Klimenchuk e a mulher dele, que vivem em São Petesburgo, foram alvo de ameaças e ofensas pela internet. As palavras citavam inclusive os filhos do casal em tom ameaçador. O motivo: ele participou de uma manifestação pela paz.

Quem também foi alvo de um ataque de governistas foi o jornalista Dmitry Muratov, editor-chefe do jornal independente Novaya Gazeta e ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Ele foi atacado com tinta vermelha no compartimento de um trem, por um cidadão que gritou “um brinde aos nossos meninos”, referindo-se aos soldados russos em ação na Ucrânia.

Muratov conta com teve queimaduras nos olhos e conjuntivite após o ataque, a respeito do qual a polícia sequer abriu uma investigação. Entretanto, o próprio Novaya Gazeta apurou o ocorrido e diz ter identificado dois agressores.

Os responsáveis pelo ataque ao jornalista teriam sido Nikolai Trifonov, um ex-membro do movimento nacionalista russo, e Ilya Markovets, conselheiro de Enrico Todua, este o presidente da União Russa de Oficiais da Reserva.

“Estas pessoas estão intimamente ligadas entre si, estão em contato com estruturas nacionalistas e patrióticas, bem como com serviços especiais”, diz o periódico.

A impunidade nesses casos é absoluta, segundo Natalya Taubina, diretora da Fundação Veredito Público de direitos humanos, que investiga tanto as violações cometidas pelo governo quanto por atores não estatais.

“Não conheço um único caso em que as autoridades investigadoras tenham tentado fazer algo sobre as portas pintadas, com tais ações minuciosamente investigadas e os autores levados à justiça”, diz ela. “Mas, assim que o grafite [antiguerra] aparece em algum lugar, os ativistas são imediatamente detidos. Este é um sinal completamente óbvio das autoridades de que a violência pode ser usada contra os ativistas e não haverá punição para isso”.

Opositores perseguidos

A indiferença das autoridades nesses episódios de repressão não estatal contrasta com a eficiência para punir aqueles que se manifestam contra a guerra, classificada pelo governo russo sob o eufemismo “operação militar especial”.

Inclusive, desde a invasão da Ucrânia no dia 24 de fevereiro, novos mecanismos legais foram colocados à disposição do Estado para facilitar o processo de detenção, julgamento e condenação dos opositores. O principal deles, uma lei do início de março com foco na guerra, pune quem “desacreditar o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 25,5 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia. A reclusão pode chegar a 15 anos.

Some-se a isso a liberdade que os apoiadores de Putin têm para perseguir quem pensa diferente. Assim, na Rússia, protestar contra o governo e seus atos, que já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia, tornou-se virtualmente impossível.

Tags: