Contrabando de grãos ucranianos financia guerra da Rússia, aponta investigação

Empresas russas privadas e estatais uniram forças para roubar alimento produzido na Ucrânia e revendê-lo como se fosse russo

Um sofisticado esquema de contrabando de grãos produzidos na Ucrânia, envolvendo companhias privadas e estatais da Rússia, movimentou centenas de milhões de dólares desde fevereiro e ajudou a financiar a máquina de guerra do presidente Vladimir Putin. É o que aponta uma investigação conduzida pela agência Associated Press (AP) em parceria com a emissora norte-americana PBS.

Imagens de satélite, dados de geolocalização, manifestos de transporte marítimo e postagens em mídias sociais foram usadas para desvendar o esquema que rendeu aos cofres russos ao menos US$ 530 milhões desde que o conflito teve início.

A operação começou logo nos primeiros dias da guerra, com a tomada pelas tropas russas de diversas cidades ucranianas. Fazendas, silos de armazenamento de grãos e instalações de transporte foram atacados, levando à apropriação de toneladas de alimento que seriam vendidas a países como Turquia, Líbano e Síria.

Laodicea no porto de Sebastopol, na península ucraniana (Foto: Marine Traffic/Divulgação)
O cargueiro Laodicea

Um das cidades invadidas por Moscou no início da guerra é Meritopol, em Zaporizhzhya, uma das quatro regiões anexadas pela Rússia após um decreto assinado por Putin na semana passada. Foi provavelmente de lá que partiu o cargueiro Laodicea, de bandeira síria e acusado pela Ucrânia de transportar grãos roubados para o Líbano.

A embarcação, que transportava cerca de dez mil toneladas de cevada e farinha de trigo, chegou a ficar detida no porto de Trípoli, a segunda maior cidade libanesa. Mas acabou liberada para seguir viagem sob o argumento de que a carga tinha procedência justificada.

A investigação, porém, aponta em outro sentido. Imagens coletadas nas redes sociais sugerem que a farinha de trigo do Laodicea foi na verdade roubada por soldados russos em Meritopol e de lá embarcou de trem e caminhão rumo à Crimeia, região igualmente anexada pela Rússia em 2014. É da Crimeia que partem as cargas, a serem vendidas como se fossem originalmente russas.

Entre os indícios que sugerem o esquema de transporte de grãos roubados estão vídeos que mostram caminhões com a letra Z, símbolo russo da guerra, seguindo rumo à Crimeia desde áreas ocupadas na Ucrânia. Também há imagens de vagões de trem verdes da empresa russa Agro-Fregat LLC que aparecem primeiro em Meritopol, na Ucrânia, depois em Feodosia, na Crimeia.

O esquema foi admitido até pela agência de notícias estatal russa Tass, que em junho citou o transporte de grãos da região ucraniana de Kherson para a Crimeia, sendo que posteriormente as cargas seriam destinadas a clientes no Oriente Médio, na África, na Turquia e na América do Norte.

As cargas transportadas pelos caminhões e trens foram destinadas ao Laodicea. Oficialmente, a Rússia alega que o navio foi carregado em Kavkaz, no Cáucaso. Entretanto, o porto russo é raso demais para receber a embarcação, cujo casco vai até oito metros abaixo da superfície da água. Ou seja, ela encalharia se parasse em Kavkaz para receber a carga.

Companhia estatal envolvida

As prova também apontam para o envolvimento da United Shipbuilding Corp., empresa estatal russa do setor de Defesa que constrói navios de guerra e submarinos. Uma subsidiária dela, a Crane Marine Contractor, comprou três navios de carga pouco antes da invasão da Ucrânia. Assim, afastou-se de seu negócio principal, que está atrelado a gás e petróleo. Esses três navios fizeram ao menos 17 viagens entre a Crimeia e portos na Síria e na Turquia.

Uma prática comum no esquema russo de contrabando é desligar o sistema de rastreamento de navios para evitar que a posição deles seja detectada. Essa é uma tática que as embarcações usam para esconder visitas à Crimeia, bem como o uso de documentos falsos que apontam o carregamentos do alimento em Kavkaz.

Ocorreu com o navio Mikhail Nenashev, que imagens de satélite mostram ancorado em Sebastopol, na Crimeia, antes de seguir para a Turquia, um dos principais destinos dos grãos vendidos pela Rússia. A declaração alfandegária mostra que o cargueiro foi abastecido em Kavkaz. Entretanto, como no caso do Laodicea, a profundidade da embarcação inviabiliza tal operação.

Esse esquema foi articulado antes por produtores de energia iranianos e norte-coreanos para obter receitas de exportação em meio a sanções. Hoje, o principal suspeito de ser artífice de tais atividades escuras é mesmo Moscou, que, além dos grãos, negócio que está enchendo o cofre do Kremlin, também pode aproveitar o plano para seguir suas vendas de petróleo mundo afora, mesmo sancionado.

Alto faturamento

Nos últimos meses, Moscou mudou o esquema e diminuiu o roubo de grãos produzidos na Ucrânia. Em vez disso, passou a pagar aos agricultores ucranianos valores muito baixos. Ao produtor não resta outra opção que não vender. Afinal, caso venha a rejeitar a oferta, corre o risco de ter seus grãos roubados.

Para os russos, ao contrário, o faturamento não para de subir. Isso porque, desde o início da guerra, os preços dos grãos dispararam em todo o mundo, assim como o das fontes de energia. Nem as sanções ocidentais parecem incomodar os compradores, que aceitam correr o risco em meio à alta demanda global por grãos.

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