Navios russos desligam rastreamento em esquema de ‘lavagem’ de grãos ucranianos

AIS offline e transferências de carga de navio para navio ajudam Moscou a mascarar o roubo da produção ucraniana

De junho para cá, as denúncias de que a Rússia tem roubado a produção de grãos da Ucrânia para revender no exterior ganham força diariamente. Evidências não faltam, e mais algumas foram reveladas pelo portal Global Trade Review.

Após uma análise de imagens de satélite, dados de rastreamento, fotos e vídeos feita pela agência Reuters, que trouxe novos indícios da pilhagem, agora, a empresa de inteligência marítima Windward apontou um aumento de 160% nas chamadas “atividades escuras” de graneleiros no Mar Negro em relação ao mesmo período em 2021.

Para esconder a localização, as embarcações de bandeira russa desligam o AIS (Sistema de Identificação Automática, da sigla em inglês), mesmo método usado pelo SV Nikolay, denunciado na reportagem da Reuters. A tática serviu para despistar uma visita à Crimeia, de onde o navio teria zarpado carregado de milho ucraniano rumo à Turquia, onde apresentou documentação falsa que dizia que o alimento tinha procedência de Porto Kavkaz, na Rússia.

Estreito de Kerch: hidrovia que liga o Mar de Azov ao Mar Negro seria cenário de “lavagem” de grãos ucranianos (Foto: WikiCommons)

Esse esquema foi articulado antes por produtores de energia iranianos e norte-coreanos para obter receitas de exportação em meio a sanções. Hoje, o principal suspeito de ser artífice de tais atividades escuras é Moscou, que, além dos grãos, negócio que estaria enchendo o cofre do Kremlin, também pode aproveitar o plano para seguir suas vendas de petróleo mundo afora, mesmo sancionado.

O apontamento da Windward se sustenta em uma análise de todos os cargueiros e graneleiros, independentemente da bandeira, que cruzaram a região no período de 1º de março de 2022 (uma semana após o início do conflito) a 15 de julho. Segundo a empresa, o levantamento indicou um total de 170 situações em que esses navios entraram no modo offline no mar de Azov e depois religaram o AIS ao sair pelo Estreito de Bósforo, rota das embarcações no Mar Negro para destinos globais.

Os principais destinos dos grãos ucranianos roubados e negociados por Moscou seriam a Síria e a Turquia. 

“Lavagem” de grãos

A Windward também fala no surgimento de transferências de carga de navio para navio, um método do qual a Rússia estaria lançando mão para tentar lavar os grãos roubados de agricultores do país invadido.

Há relatos de que foram flagradas operações do tipo que envolviam até cinco embarcações diferentes no Estreito de Kerch, uma hidrovia na costa da Crimeia que liga o Mar de Azov ao Mar Negro. Segundo relatório da empresa de inteligência marítima, em uma delas, no dia 10 de junho, três cargueiros e dois navios de serviço se agruparam na área e possivelmente trocaram grãos, posteriormente descarregados na Turquia.

Pacto

Em meio a isso, Moscou e Kiev assinaram no último dia 22, em Istambul, na Turquia, um acordo endossado pela ONU (Organização das Nações Unidas) que visa à retomada das exportações de grãos ucranianos através do Mar Negro.

Nas próximas semanas, autoridades turcas e da ONU irão monitorar o carregamento do alimento em navios ancorados na Ucrânia antes de navegar por rotas pré-planejadas pelo Mar Negro.

Segundo o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, o pacto pode disponibilizar 20 milhões de toneladas de grãos encalhados da safra de 2021, avaliados em US$ 10 bilhões.

Colheita em meio ao fogo cruzado

Não bastassem as supostas pilhagens, quem planta corre risco de vida. Na região de Kherson, parcialmente controlada pelas forças russas, o cotidiano dos agricultores é bem diferente do que costumava ser antes de 24 de fevereiro. Agora, a lida do campo ocorre ao som de tiros, bombardeios e incêndios nas plantações. Tudo em meio à colheita, que chegou ao auge da temporada, conforme mostra reportagem da Reuters.

“Os agricultores vão para os campos por sua conta e risco, pois existe a possibilidade de bombardeio. Existem áreas mais próximas da região de Mykolaiv onde é impossível colher”, disse disse Yuri Turulev, chefe da administração russa de uma pequena cidade vizinha de Chornobaivka.

Segundo ele, os agricultores têm se esforçado para colher o que resta de suas áreas de terra, porém, o trabalho tem sido dificultado pela falta de funcionários, já que boa parte fugiu da guerra.

“Toda a população em idade ativa foi embora”, disse ele, acrescentando que muitas colheitadeiras foram danificadas.

Colheita de grão na região de Ivano-Frankivsk Oblast, na Ucrânia (Foto: WikiCommons)
Esquema

O volume de alimentos transportados na Crimeia, região ucraniana anexada à força por Moscou em 2014, aumentou 50 vezes em relação ao esperado para esta época do ano.

Diante da situação, Kiev acusa Moscou de ter armado um grande esquema para faturar com a pilhagem. No último dia 6, houve um mal-estar após Ancara liberar uma embarcação russa suspeita de transportar grãos roubados. Após ser retido, o cargueiro de bandeira russa Zhibek Zholy, que estaria levando 7 mil toneladas, zarpou do porto de Karasu, algo definido pelas autoridades ucranianas como “inaceitável”. 

Somente em junho, a Rússia tomou ou danificou pelo menos um milhão de toneladas de grãos e oleaginosas, segundo estimativas da Escola de Economia de Kiev. O prejuízo foi avaliado em cerca de US$ 600 milhões.

Por que isso importa?

Em meio a um cenário que gera preocupação com a iminência de uma crise alimentar global causada pela incapacidade de Kiev de exportar trigo por conta de seus portos bloqueados pelo exército russo, autoridades ucraniana falavam na metade de junho em um rombo de aproximadamente 500 mil toneladas, resultando em um prejuízo de US$ 100 milhões.

Washington alertou que o Kremlin está colocando dinheiro nos cofres com essa pilhagem e teria estabelecido um mercado de trigo roubado que negocia o alimento com países da África atingidos pela seca causada pelo fenômeno La Niña, segundo reportagem do jornal The New York Times. Algumas dessas nações já estariam enfrentando um quadro de fome.

Juntas, Rússia e Ucrânia concentram quase 30% da exportação global de trigo e 80% das exportações de girassol. Pelo menos 40% das exportações de trigo e milho produzidos em solo ucraniano vão para o Oriente Médio e a África, que já sofrem com a fome. A interrupção em ambos os países é sentida no sistema agroalimentar mundial.

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