Imagine o seguinte roteiro: o principal adversário político do presidente russo é envenenado com um agente tóxico da era soviética. Ele sobrevive após passar meses internado em um hospital fora de seu país. Ao voltar para casa, é detido no aeroporto. Após julgado, é jogado em uma colônia penal de alta segurança, de onde vê sua organização anticorrupção ser fechada e seus aliados sendo perseguidos pelo rival, que segue sua sanha de calar críticos do regime para perpetuar-se no poder.
Esta poderia ser a sinopse de um filme de ação ambientado nas entranhas do Kremlin, mas é parte da realidade que desafia a ficção vivida por Alexei Navalny, que, se pudesse escolher, provavelmente recusaria o papel central. Sua vida foi retratada no documentário “Navalny”, do diretor canadense Daniel Roher, que irá estrear neste domingo (1) na CNN, em uma produção feita a partir de uma parceria entre CNN Films e HBO Max.
A obra investiga o atentado à vida de Navalny, principal opositor do Kremlin e que foi envenenado com novichok em 2020, durante uma viagem à Sibéria, e preso assim que retornou à Rússia após se recuperar em Berlim, em janeiro de 2021.
Produzido antes da invasão à Ucrânia, o filme, segundo detalha uma crítica publicada pela rede NPR, mostra detalhes que vão da intimidade à bravura do “homem que ousou se opor a um déspota”.
A obra não se apega à carreira de Navalny, indo direto ao ponto nevrálgico: o dramático episódio do envenenamento. Nele, o político está voando da Sibéria de volta a Moscou – o documentário mostra imagens do avião – quando de repente vira um doente à beira da morte.
O voo é desviado para Omsk, onde ele é levado para um hospital e médicos, com comportamento estranho, estão relutantes em deixar sua esposa, Yulia Navalnaya, vê-lo. Temendo uma tentativa de assassinato, ela e seus colegas lutam para levar Navalny, em coma, a um hospital na Alemanha. Lá ele recebe o diagnóstico de que recebeu uma dose de novichok, um gás nervoso mortal conhecido como “o veneno com a assinatura de Vladimir Putin“.
Recuperado, Navalny e sua equipe iniciam uma investigação para descobrir quem tentou matá-lo. Um trabalho conjunto entre CNN e o site investigativo Bellingcat liga o envenenamento à FSB (Agência de Segurança Federal da Rússia, da sigla em inglês), apoiada por uma unidade de elite da agência que seguiu a equipe do político durante a viagem à Sibéria em que adoeceu.
O documentário mostra que o esforço investigativo também apurou que esta unidade, que inclui especialistas em armas químicas, seguiu Navalny em mais de 30 viagens de e para Moscou desde 2017, segundo review do site norte-americano Kake News.
Mas nem tudo é turbulência nas duas horas e dez minutos de filme. O diretor Daniel Roher também emoldura o retrato do homem que vive dentro do herói. Particularmente ao descortinar um pouco da intimidade de Navalny, que aparece ao lado da esposa e filhos. Há também espaço para o senso de humor do inimigo número de Putin.
Segundo Adrian Horton, crítica de arte do jornal britânico The Guardian, as descobertas apresentadas no documentário são “chocantes”, ao passo que a produção “detalha de maneira convincente, estressante e fascinante o medo que o Kremlin tem de Navalny, sem dúvida a maior ameaça ao poder de Vladimir Putin em casa”.
Por que isso importa?
Navalny ganhou destaque ao organizar manifestações e concorrer a cargos públicos na Rússia. A principal plataforma do oposicionista é o combate à corrupção no governo de Vladimir Putin, em virtude da qual ele uma cobra profunda reforma na estrutura política do país.
Em agosto de 2020, durante viagem à Sibéria, Navalny foi envenenado e passou meses se recuperando em Berlim. Ele voltou a Moscou em 17 de janeiro de 2021 e foi detido ainda no aeroporto. Um mês depois, foi julgado e condenado a dois anos e meio de prisão por violar uma sentença suspensa de 2014, sob acusação de fraude. Promotores alegaram que ele não se apresentou regularmente à polícia em 2020, justamente quando estava em coma pela dose tóxica.
Encarcerado em uma colônia penal de alta segurança, ele chegou a fazer uma greve de fome de 23 dias em abril de 2021, para protestar contra a falta de atendimento médico. Depois, em junho, um tribunal russo proibiu os escritórios regionais de Navalny e sua fundação, a FBK, de funcionarem, classificando-as como “extremistas”.
Em agosto do ano passado, a Justiça russa abriu uma nova acusação criminal contra o oposicionista, o que poder ampliar a sentença de prisão dele em três anos. Ele foi acusado de “incentivar cidadãos a cometerem atos ilegais”, por meio da FBK que ele criou.
Já em setembro de 2021, uma terceira acusação, por “extremismo”, ameaça estender o encarceramento por até uma década, sendo mantido sob custódia no mínimo até o fim da próxima eleição presidencial, em 2024, quando chega ao fim o atual mandato de seis anos de Vladimir Putin no Kremlin. Em janeiro deste ano, ele foi incluído na lista de “terroristas e extremistas” do Serviço Federal de Monitoramento Financeiro da Rússia.