Cidadãos ucranianos que fogem da guerra têm sido forçados por tropas russas e aliadas a se transferir para a Rússia ou seus territórios ocupados, impossibilitados de escolher caso prefiram seguir para uma área controlada por Kiev. A denúncia consta de um relatório de 71 páginas divulgado nesta quinta-feira (1º) pela ONG Human Rights Watch (HRW).
O documento se baseia em entrevistas feitas com 54 pessoas que “foram para a Rússia, passaram por filtragem, tiveram familiares ou amigos que foram transferidos para a Rússia ou que apoiaram ucranianos tentando deixar a Rússia“. A maioria dos casos é de indivíduos que fugiram de Mariupol, na região ocupada de Donetsk, e de Kharkiv, também no leste e perto da fronteira com o território russo.
A denúncia cita ainda os “campos de filtragem”, onde as pessoas têm seus dados biométricos coletados, são fotografadas, passam por buscas corporais e revista de pertences, sobretudo telefones, e são questionadas sobre seus pontos de vista políticos.
Há relatos de que os indivíduos reprovados na triagem feita pelos russos, sobretudo por suspeita de ligação com as forças ucranianas, vão para campos de detenção, entre eles a prisão de Olenivka, onde 50 prisioneiros de guerra morreram após uma explosão em 29 de julho.
“Os civis ucranianos não devem ficar sem escolha a não ser ir para a Rússia”, disse Belkis Wille, pesquisadora sênior de crises e conflitos da HRW e coautora do relatório. “E ninguém deve ser forçado a passar por um processo de triagem abusivo para alcançar a segurança”.
De acordo com o relatório, Moscou organiza o transporte dos ucranianos e não oferece outra opção que não seguir para a Rússia ou algum território ocupado, como a República Popular de Donetsk. “É claro que teríamos aproveitado a oportunidade para ir à Ucrânia se pudéssemos, com certeza”, disse uma mulher transferida de Mariupol. “Mas não tivemos escolha, nenhuma possibilidade de ir para lá”.
O número total de ucranianos transferidos à força para a Rússia ou seus territórios controlados é incerto. Porém, Moscou anunciou em agosto que mais de 3,4 milhões de cidadãos ucranianos, incluindo 555 mil crianças, entraram na Rússia desde o início da guerra.
No final de maio, segundo informações da agência estatal ucraniana Ukrinform, com base em informações da então ouvidora de direitos humanos Lyudmyla Denisova, que já deixou o cargo, mais de 200 mil cidadãos ucranianos haviam sido deportados de Mariupol para o território da Federação Russa. Lá, durante a evacuação da cidade, os invasores russos teriam interrogado até crianças na filtragem.
Em julho, o governo norte-americano já havia denunciado tal prática, através de um comunicado do chefe da diplomacia norte-americana Antony Blinken publicado no site do Departamento de Estado. Ele disse na ocasião que os cidadãos ucranianos são coagidos “a assinar acordos para permanecer na Rússia, dificultando sua capacidade de retornar livremente para casa”.
“As leis da guerra proíbem as forças russas ou afiliadas à Rússia de forçar civis ucranianos, individualmente ou em massa, a evacuar para a Rússia. Uma transferência forçada é um crime de guerra e um crime potencial contra a humanidade”, diz o relatório da HRW, citando “violência, coação ou detenção” como consequências em caso de recusa.
Por que isso importa?
A escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia, que culminou com a efetiva invasão russa ao país vizinho, no dia 24 de fevereiro, remete à anexação da Crimeia pelos russos, em 2014, e à guerra em Donbass, que começou naquele mesmo ano.
Esses conflitos foram usados por Vladimir Putin como argumento para justificar a invasão integral, classificada por ele como uma “operação militar especial” a fim de libertar os cidadãos falantes de russo que vivem sobretudo nas autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk, há oito anos sob o controle de separatistas pró-Moscou.
“Tomei a decisão de uma operação militar especial”, disse Putin pouco depois das 6h de Moscou (0h de Brasília) de 24 de fevereiro. Cerca de 30 minutos depois, as primeira explosões foram ouvidas em Kiev, capital ucraniana, e logo em seguida em Mariupol, no leste do país.
No início da ofensiva, o objetivo das forças russas era dominar Kiev, alvo de constantes bombardeios, e assim tentar derrubar o presidente Volodymyr Zelensky. Entretanto, diante da feroz e inesperada resistência ucraniana, a Rússia foi forçada a mudar sua estratégia. As tropas, então, começaram a se afastar de Kiev e a se concentrar mais no leste ucraniano, a fim de tentar assumir definitivamente o controle de Donbass e de outros locais estratégicos naquela região. O sul ucraniano também entrou na mira de Moscou, que passou a controlar importantes aéreas.
Em meio ao conflito, o governo da Ucrânia e as nações ocidentais passaram a acusar a Rússia de atacar inclusive alvos civis, como hospitais e escolas, dando início a investigações de crimes de guerra ou contra a humanidade cometidos pelos soldados do Kremlin.
O episódio que mais pesou para as acusações foi o massacre de Bucha, cidade ucraniana em cujas ruas foram encontrados dezenas de corpos após a retirada do exército russo. As imagens dos mortos foram divulgadas pela primeira vez no dia 2 de abril, por agências de notícias, e chocaram o mundo.
Fora do campo de batalha, a Rússia tem sido alvo de todo tipo de sanções. As esperadas punições financeiras impostas pelas principais potencias globais já começaram a sufocar a economia russa, e o país tem se tornado um pária global. Desde a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro, mais de mil empresas ocidentais deixaram de operar na Rússia, seja de maneira temporária ou definitiva, parcial ou integral.