ONU contesta prisão de poetas na Rússia: ‘Viola totalmente a liberdade de expressão’

Artyom Kamardin e Yegor Shtovba foram julgados e sentenciados por participarem de uma leitura pública de poesias antiguerra

Uma especialista designada pela ONU (Organização das Nações Unidas) contestou as sentenças de prisão impostas pela Justiça da Rússia aos poetas Artyom Kamardin e Yegor Shtovba, condenados porque recitaram em público poesias contra a guerra da Ucrânia. Acusados de “incitar o ódio” contra as tropas russas e fazer “apelos contra a segurança do Estado”, ambos foram sentenciados no dia 29 de dezembro.

“A decisão viola totalmente os padrões internacionais de proteção da liberdade de expressão”, declarou Mariana Katzarova, relatora especial sobre a situação dos direitos humanos na Rússia. “A sentença do Tribunal Distrital de Tverskoy, em Moscou, revela questões sistêmicas relativas à integridade da aplicação da lei e dos sistemas judiciais na Rússia e sua utilização para suprimir dissidências e críticas, especialmente no que diz respeito à guerra da Rússia contra a Ucrânia.”

Artyom Kamardin é abordado pela polícia durante protesto na Rússia em 2021 (Foto: Facebook pessoal)

Kamardin pegou a pena mais longa, sete anos de prisão, enquanto Shtovba foi condenado a cinco anos e meio. De acordo com a rede BBC, um terceiro poeta, Nikolai Dayneko, que também participou do evento que gerou a acusação, já havia sido condenado a quatro anos de prisão, julgamento que ocorreu no início do ano.

Enquanto Dayneko se declarou culpado perante o tribunal e colaborou com as investigações, os outros dois poetas alegaram inocência, o que explica as penas mais longas. A leitura de poesias que justificou a acusação ocorreu em setembro de 2022, quando Moscou iniciou o processo de recrutamento obrigatório de cidadãos para servirem às Forças Armadas na guerra.

Quando foi detido, no dia 26 de setembro de 2022, Kamardin disse ter sido torturado pela polícia, gerando pedidos de que uma investigação fosse iniciada para apurar a atuação das forças de segurança. Entretanto, uma corte distrital descartou a alegações e vetou a abertura de um processo disciplinar.

“A natureza das acusações, a severidade das sentenças e a condução do julgamento em si, com base no depoimento de uma ‘testemunha secreta’, enviam uma mensagem clara a toda a sociedade russa de que vozes dissidentes, seja através da poesia, da arte ou de outras formas de expressão, enfrentarão sérias repercussões”, disse a especialista da ONU. “Os julgamentos simulados tornaram-se uma ferramenta de intimidação que visa incutir medo e desencorajar outros de se envolverem em expressões antiguerra.”

Além de contestar a sentença, Katzarova cobrou uma ação das autoridades russas no que tange às agressões contra Kamardin. “Apelo às autoridades russas para que investiguem imediatamente as alegações de tortura e maus-tratos contra Kamardin durante a sua detenção e levem à justiça os responsáveis ​​por estes crimes”, disse a especialista.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas a partir do momento em que a Justiça local passou a usar a pandemia de Covid-19 como pretexto para punir grandes manifestações, alegando que o acúmulo de pessoas feria as normas sanitárias. Assim, para driblar o veto, tornou-se comum ver manifestantes solitários erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro de 2022, o desafio dos opositores do presidente Vladimir Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos. Uma lei do início de março do ano passado, com foco na guerra, pune quem “desacredita o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 16,09 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, eufemismo usado pelo governo para descrever a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

Desde o início da guerra, a ONG OVD-Info reportou quase 20 mil detenções em protestos contra a guerra em todo o país. A enorme maioria dos casos, cerca de 15 mil, foi registrada no primeiro mês de guerra. Depois, houve um pico entre setembro e outubro, devido à mobilização parcial de reservistas imposta pelo governo. Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, foram registradas somente 22 detenções, um sinal de que a repressão estatal tem funcionado.

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