Político que denunciou ‘ditadura’ de Putin e ‘crimes de guerra’ da Rússia pega pena máxima

Vladimir Kara-Murza foi julgado e condenado por diversos crimes, o principal deles traição, e cumprirá 25 anos de reclusão

Um tribunal de Moscou, na Rússia, condenou nesta segunda-feira (17) a 25 anos de prisão o político e jornalista russo Vladimir Kara-Murza, crítico feroz do presidente Vladimir Putin e da guerra da Ucrânia. Ele classificou o regime como uma “ditadura” e denunciou o que seriam “crimes de guerra” no conflito.

De acordo com o site independente Mediazona, Kara-Murza foi julgado e condenado por crimes diversos. O que rendeu maior pena foi de “traição”, com sentença de 18 anos de prisão. Ele pegou ainda sete anos por divulgar “informações falsas” sobre as forças armadas e três anos por participar de atividades de uma “organização indesejável”. Embora a pena somada seja de 28 anos, foi aplicada a de 25 anos, que é a máxima permitida.

O opositor, que deixou o jornalismo para ingressar na política, foi detido em Moscou em 11 de abril do ano passado. De acordo com as autoridades, ele foi considerado suspeito porque “mudou a trajetória” do veículo que dirigia quando avistou policiais.

Kara-Murza, porém, já estava na mira do Kremlin quando foi preso. Ele chegou a fazer um discurso inflamado contra Putin na Câmara dos Deputados do Estado norte-americano do Arizona, em março de 2022, pouco menos de um mês antes de ser perseguido e detido pela polícia em seu país natal.

“Sabemos exatamente pela história como termina o tempo dos ditadores. Sempre termina igual”, disse ele no Arizona. “Ele joga bombas em áreas residenciais, hospitais e escolas. São crimes de guerra iniciados pelo regime ditatorial do Kremlin contra a nação da Europa Central. E isso, infelizmente, é o que os anos de governo de Putin nos trouxeram”.

O político e jornalista russo Vladimir Kara-Murza: pena máxima (Foto: Mykola Swarnyk/WikiCommons)

Porém, o que levou à acusação de traição foram discursos feitos por ele em eventos públicos em Lisboa, Portugal, Helsinque, na Finlândia, e Washington, nos EUA. Nessas ocasiões, ele relatou a perseguição política e a censura na Rússia e comentou as eleições locais, que mantiveram Putin no poder.

A imprensa pró-Kremlin ainda afirma que o acusado assessorou “serviços de inteligência estrangeiros”, serviço que rendia a ele US$ 30 mil por mês. Entretanto, nem os jornalistas russos que fizeram a denúncia nem a promotoria apresentaram provas de tal crime, de acordo com o Mediazona.

Envenenamentos e doença

Na prisão, onde Kara-Murza está há mais de um ano, o advogado dele relatou sérios problemas de saúde, que teriam surgido após o envio do preso ao isolamento solitário. O defensor destacou que o cliente dele passou a sentir dormência nos pés, pernas e braços, sintoma de polineuropatia.

A possível causa da doença do opositor seriam dois envenenamentos do qual ele foi vítima, em 2015 e 2017, os quais as autoridades russas sempre se recusaram a investigar. Pela lei russa, a polineuropatia está na lista de patologias que impedem o cumprimento de pena em um presídio, mas a Justiça não aceita a alegação.

Putin “usurpador”

No discurso que fez após a condenação, Kara-Murza voltou a falar contra Putin. “Estou preso por minhas opiniões políticas. Por falar contra a guerra na Ucrânia. Por muitos anos de luta contra a ditadura de Putin”, disse ele. “Não só não me arrependo de nada disso, como tenho orgulho disso”, completou.

“Eu só me culpo por uma coisa: que ao longo dos anos de atividade política não consegui convencer um número suficiente de meus compatriotas e políticos de países democráticos do perigo que o atual regime do Kremlin representa para a Rússia e para o mundo”, afirmou o opositor. 

Ele foi ainda mais duro na sequência, chamando Putin de “usurpador” e criticando o fato de o governo se referir à guerra pelo eufemismo “operação militar especial”. E acrescentou que “aqueles que acenderam e desencadearam esta guerra, não aqueles que tentaram detê-la”, serão “reconhecidos como criminosos”.

Por fim, projetou que o regime de Putin será derrubado, chegando “o dia em que as trevas sobre nosso país se dissiparão”. Depois, finalizou: “Este dia chegará tão inevitavelmente quanto a primavera vem para substituir até mesmo o inverno mais gelado. E então nossa sociedade abrirá os olhos e ficará horrorizada com os crimes terríveis cometidos em seu nome”.

Repercussão internacional

O Departamento de Estado norte-americano divulgou um comunicado no qual “condena a sentença de Vladimir Kara-Murza de 25 anos de prisão por se manifestar contra a guerra de agressão do governo russo contra a Ucrânia”. O texto diz ainda que o jornalista “é mais um alvo da crescente campanha de repressão do governo russo”.

O comunicado também cita outras vítimas da repressão estatal, entre elas Alexei Navalny, condenadas por se “posicionarem corajosamente pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais”.

A ONG Anistia Internacional também se manifestou. “A sentença de prisão de 25 anos de Vladimir Kara-Murza é mais um exemplo assustador da repressão sistemática da sociedade civil, que se ampliou e se acelerou sob o Kremlin desde a invasão russa da Ucrânia no ano passado”, disse Natália Zviagin, diretora da entidade para a Rússia, classificando como “atos de bravura” o que a justiça russo tratou como crimes.

Já o Ministério das Relações Exteriores da França saudou “a coragem de mulheres e homens como Vladimir Kara-Murza, Alexei Navalny e tantos outros que defendem a liberdade de expressão e opinião apesar dos riscos envolvidos”, segundo a rede CNN.

Por sua vez, o Ministério das Relações Exteriores da Áustria usou o Twitter para condenar a decisão. “A Áustria está profundamente alarmada com a deterioração da situação dos direitos humanos na Rússia. Condenamos veementemente a sentença de 25 anos de motivação política de @vkaramurza e pedimos sua libertação imediata e incondicional. A repressão da sociedade civil russa deve parar”.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas a partir do momento em que a Justiça local passou a usar a pandemia de Covid-19 como pretexto para punir grandes manifestações, alegando que o acúmulo de pessoas feria as normas sanitárias. Assim, tornou-se comum ver manifestantes solitárias erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro de 2022, o desafio dos opositores do presidente Vladimir Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos. Uma lei do início de março, com foco na guerra, pune quem “desacredita o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 22 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, que é como o governo descreve a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

O cenário mudou com a mobilização militar parcial anunciada por Putin no dia 20 de setembro. O risco de serem obrigados a lutar na Ucrânia levou milhares de reservistas a fugir do país, com fronteiras lotadas em países como GeórgiaMongólia e Cazaquistão. Entre os que ficaram, a ideia de aceitar a convocação não é unanimidade, e protestos populares voltaram a ser registrados em todos os cantos. 

Somente na primeira semana que sucedeu o anúncio, a ONG OVD-Info, que monitora a repressão estatal na Rússia, registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a mobilização. E o número real de detidos tende a ser maior, vez que a entidade contabiliza somente os nomes que confirmou e que foi autorizada a divulgar, tendo sempre como base as listas fornecidas pelas autoridades.

Desde o início da guerra, a ONG reporta mais de 19,5 mil detenções em protestos contra a guerra em todo o país, com 500 pessoas levadas ao tribunal para responder criminalmente por seus atos. A enorme maioria dos casos, cerca de 15 mil, foi registrada no primeiro mês de guerra. Depois, houve um pico entre setembro e outubro, devido ao recrutamento. Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, foram registradas somente 22 detenções, um sinal de que a repressão estatal tem funcionado.

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