Quatro mulheres russas enfrentam a prisão em meio à repressão do Kremlin

Mais de 40 pessoas em toda a Rússia foram indiciadas criminalmente por "desacreditar as forças armadas" em meio à guerra

Uma lei em vigor na Rússia desde março proíbe o cidadão de “desacreditar as forças armadas” e de divulgar o que o Kremlin considere “informações falsas” sobre a guerra. Nessa atmosfera de repressão em tempos beligerantes, quatro mulheres de São Petersburgo poderão permanecer na cadeia por até dez anos: a artista Aleksandra Skochilenko, a gerente de negócios Viktoria Petrova, a jornalista Maria Ponomarenko e a ativista digital Olga Smirnova. As informações são da rede Radio Free Europe.

Os crimes cometidos, que resultaram em prisões preventivas, soam banais: elas colaram adesivos antiguerra ou fizeram publicações nas redes sociais sobre o conflito em andamento na Ucrânia. O caso de Aleksandra, por exemplo, é bastante inusitado. A artista foi detida por substituir as etiquetas de preços nos produtos dos supermercados locais por mensagens de repúdio à invasão aos vizinhos ucranianos.

Não se sabe ao certo quantos russos foram levados sob custódia por conta do artigo 207.3 do Código Penal, assinado pelo presidente Vladimir Putin no dia 4 de março, pouco mais de uma semana após o início da guerra. A legislação que criminaliza informações falsas sobre exército russo prevê penas que vão de três a 15 anos de prisão.

Artista russa Aleksandra Skochilenko, presa por protestar contra a guerra nas etiquetas de preços (Foto: Instagram)

De acordo com o “Agora“, um grupo russo que presta apoio jurídico às vítimas de violação dos direitos humanos pelo governo, 32 casos foram abertos sob o estatuto em abril. Na contagem da OVD-Info, uma organização que monitora a repressão policial na Rússia, são pelo menos 44 até o momento.

As extensas penas de prisão previstas pela nova lei sugerem uma nova fase dos esforços de Putin para dar fim aos opositores da guerra na Ucrânia e reprimir a dissidência.

“Os investigadores ‘provam’ os motivos usando postagens antigas nas redes sociais que mostram qualquer crítica às autoridades”, disse o advogado de São Petersburgo Stanislav Seleznyov. “E eles automaticamente pedem aos juízes que mantenham os réus em custódia enquanto aguardam o julgamento, sob justificativa de que há ordens ‘de cima’ para manter todos em prisão preventiva”, acrescentou.

Segundo Seleznyov, os suspeitos são frequentemente interrogados sem a presença de um advogado, sendo pressionados a assinar confissões “que incluem linguagem usada posteriormente no tribunal para estabelecer que o réu sabia que as informações que ele distribuiu eram falsas”.

As acusadas

Aleksandra Skochilenko, de 32 anos, faz parte do movimento Resistência Feminista Antiguerra, que tem como uma de suas marcas a substituição das etiquetas de preços por mensagens de protesto. O mesmo grupo é responsável por pintar mensagens de repúdio ao conflito em cédulas e moedas de rublo. 

Viktoria Petrova, de 27 anos, é bastante ativa nas mídias sociais, mas não é ativista, embora tenha participado de protestos. A acusação contra ela foi originada de um post datado de 23 de março, já excluído. A publicação trazia um link de uma fala do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Olga Smirnova, idade não revelada, integrava um grupo de bate-papo chamado “Resistência Pacífica” no VK, uma rede social com sede em São Petersburgo semelhante ao Facebook. Lá foram encontradas postagens sobre a situação política na Rússia. O grupo foi bloqueado.

Maria Ponomarenko, idade não revelada, é jornalista da região de Altai, no sul da Sibéria. Ela foi detida por conta de um post nas redes sociais em que falava sobre o bombardeio da Rússia a um teatro na cidade ucraniana de Mariupol, onde civis estavam abrigados.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas da Rússia desde que o governo passou a usar a pandemia de Covid-19 como argumento para punir grandes manifestações, sob a alegação de que o acúmulo de pessoas fere as normas sanitárias. Assim, tornou-se comum ver pessoas solitárias erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro, o desafio dos opositores do presidente Vladimir Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos.

Dentro da severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 16,9 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, que é como o governo descreve a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

Artista russa é presa por protestar contra a guerra nas etiquetas de preços
Jovem russa exibe cartaz com a frase “não matarás” em protesto antiguerra (Foto: reprodução/Twitter)

Apesar dos riscos, muitos russos enfrentam a repressão e a possibilidade de serem presos e protestam de diversas maneiras para deixar clara sua oposição ao conflito.

Em Moscou, no dia 15 de março, ignorando todos esses riscos, uma mulher escolheu como ponto de protesto a Catedral do Cristo Salvador. Em um cartaz, reproduziu o sexto mandamento segundo a Igreja Ortodoxa: “Não matarás”. Outra mulher desafiou a censura e se posicionou em uma esquina próxima do Kremlin com um cartaz que dizia “Não à guerra”. Ambas foram retiradas por policiais e colocadas em um camburão menos de dez minutos depois de exibirem os cartazes.

Yevgenia Isayeva, uma artista e ativista da cidade russa de São Petesburgo, optou por um protesto mais gráfico no dia 27 de março. Com um vestido branco, ela se posicionou em frente à prefeitura da cidade e, então, despejou tinta vermelha sobre a roupa, enquanto dizia repetidamente: “Meu coração sangra, meu coração sangra…”. Também teve poucos minutos para se manifestar antes de ser retirada à força.

Há, ainda, os manifestantes que querem deixar sua mensagens sem expor a própria imagem. Casos dos grafiteiros que têm feito surgir nos muros de cidades russas mensagens antiguerra. Também em 27 de março, dois homens foram presos na cidade de Tula, no sul do país, acusados de grafitar mensagens como “Derrubem Putin” e “Parem Putin”.

A jornalista russa Marina Ovsyannikova, por sua vez, ficou conhecida mundialmente por interromper um noticiário na TV estatal russa Canal 1 (Piervy Kanal) para protestar contra a invasão da Ucrânia. No dia 14 de março, ela se postou repentinamente atrás da apresentadora de um telejornal com um cartaz escrito em russo e inglês que dizia “Não à guerra, não acredite na propaganda. Eles estão mentindo para você”. Ela ficou no ar durante vários segundos até que o canal a tirasse de cena.

No dia seguinte ao protesto, a Justiça russa condenou a jornalista a pagar também uma multa de 30 mil rublos (cerca de R$ 1,69 mil), justificando de se tratar de uma “tentativa de organizar um protesto não autorizado”. Ovsyannikova diz que pediu demissão e que não pretende sair do país, alegando ter recusado uma oferta de asilo da França. Em abril, ela foi contratada como correspondente freelancer do jornal alemão Die Welt.

Coletivamente, um jeito diferente de protestar tem sido através de mensagens escritas em cédulas e moedas de rublos. O fenômeno passou a ser compartilhado em plataformas como Twitter, Telegram e Reddit. As mensagens são normalmente escritas à mão, sendo as frases mais comuns “não à guerra” e “russos contra a guerra”.

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