Relatos de crianças abduzidas reforçam alegação de que a Rússia quer apagar a Ucrânia

Enquanto Moscou se vangloria de ter acolhido 700 mil crianças do país invadido, enfrenta acusações de tentar eliminar sua identidade ucraniana

Autoridades ucranianas registraram o desaparecimento de 20 mil crianças nos últimos dois anos, que alegam terem sido levadas da Ucrânia para a Rússia. No entanto, acreditam que o número real pode ser até dez vezes maior. O governo russo, por sua vez, admite ter transferido 700 mil crianças ucranianas para seu território e se vangloria da ação, que enxerga como algo benéfico aos menores e que diz se tratar de um movimento voluntário. Entretanto, relatos recentes das próprias crianças reforçam a suspeita de que foram abduzidas, havendo por trás um objetivo maior de Moscou: eliminar a existência ucraniana.

Quase dois anos após o início da guerra, crescem os temores de que o programa sistemático de Moscou para “reeducar” as crianças ucranianas possa ser eficaz de forma devastadora. As autoridades de Kiev têm apelado às organizações internacionais e a países neutros que possam influenciar a Rússia, pedindo que o Kremlin seja pressionado a abandonar a prática

Dos 19,5 mil casos apurados e confirmados pelas autoridades ucranianas, apenas cerca de 400 crianças conseguiram retornar à terra natal até o momento, de acordo com o jornal The Guardian.

O presidente da Letônia, Edgars Rinkēvičs, denunciou que a Rússia está apagando a identidade ucraniana e causando “danos emocionais graves”. Falando durante uma conferência em Riga, ele criticou a atitude “orgulhosa” da Rússia em relação a essas ações.

Milhares de crianças ucranianas não conseguiram fugir da agressão russa (Foto: WikiCommons)

As reivindicações russas sobre o reassentamento de crianças são uma das razões pelas quais o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão no ano passado contra o presidente Vladimir Putin e a comissária russa para os direitos das crianças, Maria Lvova-Belova. A ordem acusa a Rússia de agir com a “intenção de remover permanentemente” crianças da Ucrânia, um crime de guerra.

Andriy Kostin, procurador-geral da Ucrânia, descreveu as ações russas como a maior deportação de crianças na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. “A Rússia está tentando destruir a nação ucraniana, não apenas fisicamente, mas também cortando os laços familiares e apagando a identidade ucraniana das crianças deportadas”, afirmou ele em Riga.

Centros de reeducação

As autoridades de Kiev apresentaram provas ao TPI de que mais de 19 mil crianças ucranianas foram deportadas pelo Exército russo e enviadas para campos de reeducação na Crimeia e na Rússia, segundo a rede Fox News.

Em depoimento perante o Congresso norte-americano, a embaixadora da Ucrânia, Oksana Markarova, expressou incerteza quanto ao número exato de crianças sequestradas. Embora os russos aleguem ter levado 700 mil crianças, os registros oficiais da Ucrânia confirmam mais de 19 mil casos.

Markarova enfatizou que, enquanto a Ucrânia não for totalmente libertada e a guerra não chegar ao fim, o destino das crianças e civis permanecerá desconhecido.

Três adolescentes ucranianos que conseguiram escapar desses campos contaram à Fox News sobre sua experiência após testemunharem perante o Congresso. Ksenia, de 19 anos, foi sequestrada de sua casa em Kharkiv há dois anos, junto com seu irmão, que na época tinha apenas dez anos.

“Fui mandada para a escola, e meu irmão mais novo foi mandado para um ‘acampamento de verão’”, disse a jovem. “Meu irmão estava sob pressão o tempo todo. Disseram-lhe que a Ucrânia não tem futuro, que ninguém se lembra dele na Ucrânia. Disseram-lhe que os ucranianos são burros, que os ucranianos não sabem nada, são nazistas. Disseram-lhe que a guerra destruiria a Ucrânia em breve e não fazia sentido voltar atrás, que ele ficaria na Rússia, onde poderia ter futuro.”

As denúncias contra Moscou foram reforçadas no mês passado, durante audiências do Comitê dos Direitos da Criança, que contou com um painel de especialistas apontados pela ONU (Organização das Nações Unidas) e ocorreu em Genebra, na Suíça.

“Concluímos que existem provas de transferência forçada de crianças da Ucrânia para a Rússia”, disse Bragi Gudbrandsson, vice-presidente do órgão, segundo relatou a agência Associated Press (AP).

Os especialistas destacaram as ações russas para tentar eliminar a identidade ucraniana, denunciando a “propaganda estatal generalizada e sistemática nas escolas sobre a guerra.” E pediram às autoridades internacionais que tomem atitudes efetivas para “prevenir quaisquer tentativas de reescrever o currículo escolar e os manuais escolares para refletir a agenda política e militar do governo.”

“Consideramos que é um risco muito grande para o futuro destas crianças, que estão basicamente sendo doutrinadas”, declarou Ann Skelton, a presidente do Comitê.

Nas audiências, Moscou se defendeu através de Alexey Vovchenko, vice-ministro do Trabalho e da Proteção Social. Segundo ele, nenhum ucraniano foi removido à força do seu país, e os 4,8 milhões de cidadãos da Ucrânia, incluindo 770 mil crianças, que foram para a Rússia durante a guerra optaram pela viagem voluntariamente e foram acolhidos no país.

Crime de guerra

A deportação em massa forçada de pessoas durante um conflito é classificada pelo Direito Internacional Humanitário como um crime de guerra. A “transferência forçada de crianças”, particularmente, configura um ato genocida.

O crime se enquadra no conceito estabelecido pela Convenção de Genocídio de 1948, um tratado adotado pela Assembleia Geral da ONUapós o Holocausto. Ele define como genocídio a “intenção de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.”

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