Rússia abre mão de nova mobilização e adota métodos escusos para recrutar mais soldados

Governo russo ameaça cidadãos, impõe restrições a migrantes e atua até no exterior em busca de mão de obra para as Forças Armadas

Em setembro de 2022, quando anunciou uma mobilização oficial em todo o país para adicionar 300 mil novos combatentes às Forças Armadas, o governo russo foi alvo de protestos, viu milhares de homens fugirem do país e registrou até ataques contra postos de alistamento. De lá para cá, o apelo por novos soldados não diminuiu, mas Moscou segue reticente em iniciar um novo e impopular recrutamento em grande escala. Em vez disso, opta por métodos alternativos, muitas vezes escusos, para manter suas tropas devidamente abastecidas de soldados. Mesmo que para isso tenha que abrir mão da qualidade dos militares em favor da quantidade.

A principal estratégia do Kremlin para atrair novos combatentes é oferecer vantajosos benefícios àqueles que optem por se tornar soldados profissionais. Segundo a revista Newsweek, a promessa é de salários iniciais de 160 mil rublos (cerca de R$ 9,1 mil) por mês, mais que o triplo da média nacional. Há quem se deixe convencer, mas a ideia de colocar a vida em risco na Ucrânia é cada vez menos sedutora.

Os relatos que chegam da Ucrânia são raros, dada a repressão estatal à divulgação de informações sobre o conflito. Ainda assim, têm sido suficientes para expor o “inferno” do campo de batalhas, palavra usada por um soldado cujo vídeo viralizou nas redes sociais em abril. “Você vai ganhar dinheiro”, disse ele. “Mas você achou que seria fácil? Caramba, não!”

Soldado russo recebe abraço de uma mulher não identificada (Foto: facebook/mod.mil.rus)

Na gravação, o militar adverte que aqueles que buscam heroísmo estão no lugar errado, pois logo confrontarão o horror da morte e da violência no campo de batalha. Ele descreveu a experiência como “mais do que medo”, sendo um terror que os recrutas precisarão superar para evitar a deserção ou a captura.

Se o dinheiro não convence os russos a lutar, a pressão estatal parece exercer esse papel muito bem. De acordo com ativistas de direitos humanos ouvidos pelo jornal The Moscow Times, cidadãos que cumprem o serviço militar obrigatório têm sido enviados para a guerra mesmo sem a preparação adequada e contra a lei nacional, que impede tal movimento.

“Eles estão sendo recrutados após meio ano de serviço, quando já possuem algumas habilidades básicas”, disse o advogado Alexei Tabalov, chefe de uma ONG que defende indivíduos recrutados para combater. “Após enfrentar a reação pública, a resistência e o ressentimento, [o governo] está agindo de forma mais hábil e calculada, enviando para a linha da frente aqueles que querem e aqueles que não podem recusar.”

Durante o período de serviço militar obrigatório, a propaganda estatal cumpre a missão complementar de tentar convencer os reservistas a aceitar o bom salário militar para ir à guerra. A adesão, ainda assim, não satisfaz as necessidades das Forças Armadas, e casos de violência contra aqueles que não se deixam seduzir têm sido reportados.

A família do jovem Andrei Lazhiev diz que ele foi morto durante uma sessão de espancamento após se recusar a assinar o contrato militar. Denúncias assim eram frequentes no período em que os mercenários do Wagner Group exerciam papel de destaque no conflito, cenário que mudou somente após o motim da organização e a morte de seu líder Evgeny Prighozin.

Em abril do ano passado, o think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês) divulgou um vídeo no 170 supostos recrutas eram enviados diretamente para o campo de batalhas, em vez de seguirem para um campo de treinamentos como prometido. Lá, segundo familiares, os indivíduos teriam sido forçados a assinar contrato com o Wagner Group.

Os principais alvos de coação por parte do governo russo para servir ao exército são migrantes de países da Ásia Central. Homens nascidos em países como CazaquistãoTadjiquistão são pressionados a prestar serviço militar caso queiram manter a cidadania, e até familiares são ameaçados de expulsão caso os indivíduos não concordem em ir à guerra.

O jornal independente Novaya Gazeta chegou a relatar uma grande operação para capturar migrantes durante as festas de fim de ano, na virada de 2023 para 2024. Segundo o periódico, cerca de três mil pessoas foram detidas pelas forças de segurança, que buscavam novos combatentes entre os alvos da operação.

Dados do Ministério do Interior russo indicam que há no país cerca de 10,5 milhões de pessoas provenientes de países como Cazaquistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão. Muitos, inclusive, foram alvo da mobilização de Putin em 2022. Os que conseguiram escapar na ocasião entraram na mira mais tarde.

E nem é preciso viver na Rússia para estar ao alcance do Ministério da Defesa de Moscou. Há denúncias em vários países de agentes recrutando ou mesmo enganando cidadãos estrangeiros para lutar. No Nepal, familiares de homens que teriam aceitado propostas vantajosas para ir à guerra na Ucrânia cobram o governo local após meses sem receber notícias daqueles que foram combater.

O governo nepalês afirma que há ao menos 200 cidadãos do país servindo às forças russas na guerra da Ucrânia. Um político local diz que na verdade são mais de 700, enquanto cidadãos locais que foram à Rússia alegam que há milhares de compatriotas entre nas tropas de Moscou.

Segundo o site Jurist News, o governo do Sri Lanka também decidiu agir diante das alegações de que centenas de seus cidadãos foram recrutados para ir à guerra. O ministro das Relações Exteriores fala em algo entre 600 e 800 cingaleses a serviço das forças russas na Ucrânia.

A Índia é outro país que apura casos semelhantes, com homens que teriam aceitado ofertas de emprego na Rússia sem saber que na verdade haviam assinado com as Forças Armadas do Kremlin para lutar.

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