Durante uma cerimônia simbólica realizada na segunda-feira (1º) em Bucha, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, afirmou que a Rússia deve ser responsabilizada por mais de 183 mil crimes de guerra registrados desde o início da invasão em 2022. A cidade, situada ao noroeste de Kiev, ficou marcada por relatos de execuções, estupros e torturas atribuídas às tropas russas durante a ocupação.
“Mais de 183 mil crimes relacionados à agressão da Rússia contra a Ucrânia foram oficialmente documentados”, disse Zelensky ao lado de líderes europeus e da primeira-dama Olena Zelenska, conforme relatou a agência Reuters. O presidente destacou que o número não inclui as regiões ucranianas atualmente ocupadas pela Rússia, o que pode indicar uma dimensão ainda maior das violações.
No terceiro aniversário da expulsão das forças russas de Bucha, o governo ucraniano organizou um ato para homenagear as vítimas e reforçar o apelo por justiça internacional. “Precisamos de um direito internacional eficaz para garantir a proteção do nosso povo e de toda a sociedade europeia contra essas ameaças”, declarou Zelensky. “A justiça deve ser feita para que o mal não se prolifere.”
Um crime frequentemente atribuído às forças de ocupação é a execução sumária de cidadãos ucranianos, militares e civis. Desde o início da invasão em grande escala, a polícia nacional ucraniana já registrou ao menos 133 mortes possivelmente ocorridas dessa forma. Um documentário produzido pelo jornal Financial Times expôs mais de 30 dessas execuções, que foram captadas por drones e celulares e reforçam a suspeita de que os assassinatos ocorrem ao longo de toda a linha de frente do conflito.
A investigação que gerou o documentário reforça os indícios de que as execuções de prisioneiros ucranianos fazem parte de um esquema sistemático conduzido por forças russas. Segundo promotores e organizações de direitos humanos, as evidências sugerem que os crimes não são atos isolados de unidades descontroladas, mas sim um método intencional de eliminação de inimigos.

TPI enfraquecido dificulta punição
A maioria dos crimes de guerra atribuído aos soldados russos está sendo investigada por autoridades ucranianas, mas o Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, também conduz apurações sobre crimes de maior visibilidade. O grande desafio para a corte atualmente é lidar com seu enfraquecimento político, tendo inclusive o governo norte-americano de Donald Trump atualmente como um importante obstáculo.
Nem os EUA nem a Rússia reconhecem a jurisdição do tribunal. Além disso, sanções impostas por Washington afetaram programas de financiamento internacional que apoiavam investigações na Ucrânia, dificultando o acesso a especialistas e ferramentas jurídicas.
O que pode ajudar a revitalizar os casos conduzidos pelo TPI é a disposição de combatentes do lado russo de servirem como testemunhas de suas próprias atrocidades. De acordo com a rede holandesa NPO 1, Igor Salikov, mercenário do Wagner Group, é um que aceitaria depor perante a corte internacional sobre casos que teria testemunhado no campo de batalhas.
Um dos crimes citados por ele é o de crianças ucranianas levadas para territórios russos durante a guerra, o que levou o TPI a emitir, em março de 2023, um mandado de prisão internacional contra o presidente Vladimir Putin e a comissária para os direitos da criança do gabinete dele, Maria Alekseyevna Lvova-Belova. “Vi pessoas dos serviços secretos levarem um grande número de crianças sem pais através da fronteira para Belarus”, disse.
No entanto, foi a violência contra civis que levou Salikov a mudar de lado. Os episódios não teriam ocorrido somente na guerra em grande escala, iniciada com a invasão russa de 24 de fevereiro de 2022. São anteriores, desde a guerra separatista em Donbass, em 2014, onde também serviu. O mercenário diz que não somente viu as “atrocidades“, como ele mesmo classificou, serem cometidos. Teve acesso também a documentos que podem provar o envolvimento de figuras do alto escalão do governo.
Outro caso delicado para o Kremlin é o de Voislav Torden, que cumpre pena de prisão perpétua na Finlândia por crimes de guerra. De acordo com a rede local YLE, ele usava anteriormente o nome Jan Petrovski e é um dos fundadores da milícia neonazista Rusich, que assim como o Wagner Group age conforme os interesses de Moscou, embora não mantenha uma relação formal comprovada com o governo russo.
Preso pelas autoridades finlandesas em julho de 2023, no aeroporto de Helsinque, ele teve um pedido de extradição para a Ucrânia negado. Acabou julgado na Finlândia e condenado em março deste ano por participar do assassinato de um soldado e fotografar o soldado morto, posteriormente ajudando a disseminar as imagens.
O procurador-geral interino da Ucrânia, Oleksiy Khomenko, afirmou que só na região de Bucha foram cometidos mais de nove mil crimes, incluindo 1,8 mi assassinatos. Segundo ele, 178 pessoas já foram formalmente acusadas, e 21 foram condenadas por tribunais locais. “A Ucrânia não vai parar no caminho para levar os responsáveis à justiça”, afirmou.
O massacre de Bucha
Os corpos de dezenas de pessoas foram encontrados nas ruas de Bucha em março de 2022 quando as tropas locais reconquistaram a área após a retirada do Exército russo. As imagens dos mortos foram divulgadas pela primeira vez no dia 2 de abril de 2022, por agências de notícias, e chocaram o mundo.
As fotos mostravam pessoas mortas com as mãos amarradas atrás do corpo, um indício de execução. Outros corpos apareciam parcialmente enterrados, com algumas partes à mostra. Havia também muitos corpos em valas comuns. Nenhum dos mortos usava uniforme militar, sugerindo que as vítimas eram civis.
“O massacre de Bucha prova que o ódio russo aos ucranianos está além de qualquer coisa que a Europa tenha visto desde a Segunda Guerra Mundial”, disse na ocasião o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, em sua conta na rede social X, então Twitter.
Moscou sempre negou as acusações, dizendo na ocasião que, “durante o tempo em que a cidade esteve sob o controle das Forças Armadas russas, nenhum morador local sofreu qualquer ação violenta”. O regime russo classificou as denúncias como “outra farsa, uma produção encenada e provocação do regime de Kiev para a mídia ocidental, como foi o caso em Mariupol com a maternidade“.
Entretanto, imagens de satélite da empresa especializada Maxar Technologies derrubaram o argumento da Rússia poucas semanas depois, e as alegações do Kremlin perderam ainda mais força com o surgimento de novas evidências nos anos que se seguiram.
O jornal The New York Times realizou uma investigação com base nessas imagens e constatou que objetos de tamanho compatível com corpos humanos aparecem na rua Yablonska entre 9 e 11 de março. Eles estão exatamente nas mesmas posições em que foram descobertos os corpos quando da chegada das tropas ucranianas, conforme vídeo feito por um residente da cidade em 1º de abril.
Segundo reportagem da rede Radio Free Europe (RFE), além dos mortos, ao menos 33 civis sequestrados durante a ocupação de Bucha seguem desaparecidos, possivelmente presos na Rússia.