‘Em 2020, teremos a maior operação de nossa história’, diz diretor do Programa Mundial de Alimentos no Brasil

Iniciativa vai atender 138 milhões neste ano e investirá em vouchers e dinheiro durante pandemia do coronavírus

por Anna Rangel

O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, que auxilia países em grave crise, organiza neste ano a maior operação humanitária de sua história. Serão 138 milhões de pessoas atendidas até dezembro, explicou Daniel Balaban, diretor da organização no Brasil.

A região que exigirá maior atenção é a África, onde uma em cada quatro pessoas não tem acesso a alimentação básica suficiente. Na América Latina e Caribe, preocupa a alta informalidade da economia, que joga uma parcela da população para a margem do sistema de seguridade social.

“Há uma preocupação especial em relação ao Haiti, ao chamado “corredor seco” na América Central [que compreende Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e uma parte da Costa Rica, além do sul do México] e aos migrantes venezuelanos na Colômbia, no Equador e no Peru”, enumera Balaban.

Nessa megaoperação, a operação logística ganhou uma camada extra de dificuldade após a pandemia. Antes do novo coronavírus, um dos principais pontos de distribuição de alimentos eram as escolas. Desde março, esses locais foram fechados na maioria dos países, em medidas pela contenção da doença.

Agora, a organização tem investido em vouchers, alimentos prontos e transferências em dinheiro – mais da metade do auxílio em todo o mundo exigiu mudanças logísticas. A meta é fazer chegar ajuda humanitária ao mesmo tempo em que se evitam aglomerações de pessoas para recebê-la.

Confira, na íntegra, a conversa de Balaban com A Referência.

"2020 será maior operação da história", diz diretor da ONU sobre alimentos
Daniel Balaban, representante do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas no Brasil (Foto: WFP/Divulgação)
Gostaria que o senhor nos traçasse um panorama da situação da segurança alimentar no mundo, com a pandemia. Quais regiões inspiram mais cuidados e por quê?

Em 2019, 690 milhões de pessoas passaram fome no mundo, de acordo com dados do relatório SOFI 2020 (Estado da Segurança Alimentar e Nutrição do Mundo). A pandemia da Covid-19 está intensificando as vulnerabilidades e inadequações de sistemas alimentares por toda parte.

Ainda é cedo para sabermos exatamente qual será o impacto total das ações de suspensão das atividades econômicas e sociais, parte do esforço de
combate ao novo coronavírus. Mas estimativas apontam que ao menos 83 milhões de pessoas, e talvez até 132 milhões, poderão passar fome em 2020 como resultado direto da recessão econômica alavancada pela pandemia.

A Ásia ainda é a região com o maior número de pessoas malnutridas, com 381 milhões. A África vem em segundo, com 250 milhões, seguida da América Latina e Caribe, com 48 milhões. Em termos percentuais, a África é o continente que merece mais atenção, com 19,1% de sua população malnutrida. Na Ásia, esse índice é de 8,3%, e 7,4% na América Latina.

Entre os países onde vocês estão presentes e há emergências alimentares, há nações na África, no Oriente Médio e na África. Quais são os desafios específicos de cada região?

Em países em que não havia situação de emergência ou conflito antes do Covid, novos desafios surgiram com a pandemia. O fechamento de escolas, por exemplo, dificultou ou impossibilitou milhares de crianças de acessarem alimentação. Em muitos contextos, a merenda era a mais importante fonte de comida dessas pessoas.

Hoje, o WFP atua em seis situações de emergência, e a mais crítica é o Iêmen, onde atendemos mais de 12 milhões todo mês. Já são mais de cinco anos de conflitos, e hoje prestamos assistência à metade da população do país. Na República Democrática do Congo, que concentra a segunda maior crise alimentar no momento, a insegurança alimentar saltou de 7,7 milhões em 2017 para 13,1 milhões em 2018 – destas, mais de cinco milhões de crianças. Lá, damos assistência a 8,5 milhões.

Já o Sudão do Sul tem enfrentado os mais altos níveis de insegurança alimentar desde a independência, em 2011. Houve forte mobilização internacional e os níveis de fome foram diminuindo, mas a situação ainda é crítica. São quase sete milhões de pessoas, ou 60% da população, com dificuldades de consumir alimentos suficientes todo os dias. Além da assistência regular oferecida a cinco milhões de pessoas, o WFP vai fornecer assistência a mais 1,6 milhão em áreas urbanas, que serão afetadas pela consequência das Covid-19.

Na Síria, após dez anos de conflito, a situação humanitária é grave. Desde dezembro de 2019, quase um milhão de pessoas se deslocaram da região noroeste do país. O WFP fornece alimentação emergencial a 4,5 milhões de pessoas ali e, com a pandemia, estimativas indicam que 9,3 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar. Outra região é a Nigéria, nas regiões de Borno, Yobe e Adamawa, no nordeste do país, tomadas por conflitos e quase três milhões de pessoas estão em situação de fome e dependem de assistência. Já no Sahel Central, que inclui Burkina Faso, Mali e Niger, também há conflito, pobreza e impactos das mudanças climáticas e fornecemos alimento a 4,1 milhões de pessoas na região.

O relatório mais recente da WFP, do dia 3, aponta que América Latina e África Ocidental e Central serão as regiões mais afetadas pelo aumento da segurança alimentar em decorrência da pandemia. Quais são, além da pandemia, os contextos locais associados que impulsionam essa alta e como responder a eles?

Na América Latina, há uma preocupação especial em relação ao Haiti, ao chamado “corredor seco” na América Central [que compreende sobretudo Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e uma parte da Costa Rica, além do sul do México] e aos migrantes venezuelanos na Colômbia, no Equador e no Peru. A situação dos trabalhadores informais também é bastante preocupante, já que muitos não têm cobertura de nenhum programa de proteção social.

O número de latino-americanos e caribenhos em situação de fome aguda pode quadruplicar, chegando a 16 milhões. Isso considerando dados dos países onde o WFP opera, o que exclui, por exemplo, o Brasil.

Já a África Ocidental enfrenta a ameaça de fome aguda, acompanhada de crises de deslocamentos, como as enfrentadas por Sudão do Sul e Somália. Também há o aparecimento de gafanhotos, destruindo plantações em alguns países e alagamentos extensos na região. Todas essas crises têm sido potencializadas pelas consequências da pandemia.

O WFP calcula que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar extrema pode, no pior dos casos, quase dobrar. Isso significa chegar a 41,5 milhões de pessoas

No sul do continente africano, para se ter uma ideia, a região só registrou níveis regulares de chuva uma vez nas últimas quatro estações. Em 2019,
choques climáticos agudos resultaram no mais alto pico de insegurança alimentar aguda da última década.

Relatórios do WFP mostram que 42 milhões de pessoas podem precisar de assistência alimentar em 2020 em 12 países da África. Em 2019, este número estava em 26 milhões. Se tivermos de fato uma crise econômica generalizada, além da diminuição do volume de remessas de dinheiro do exterior, isso terá efeitos no comércio e na saúde. Neste caso, a fome pode chegar a 52 milhões.

Houve alguma alteração de política (por exemplo, vouchers em vez de cestas básicas) para oferecer uma resposta mais ágil contra a fome na pandemia? Em caso negativo, isso vem sendo avaliado?

O WFP tem mobilizado operações para atender às necessidades alimentares de um número recorde de pessoas neste ano, de 138 milhões. Será a maior operação humanitária da história da organização, devido às novas demandas, que são sem precedentes.

Com a pandemia, as operações precisaram ser reajustadas, com, por exemplo, aumento de operações de transferência de dinheiro para os beneficiários. Mais da metade das operações do WFP em resposta à nova crise será composta de vouchers de alimentação e transferências.

Isso faz com que as comunidades urbanas possam suprir suas necessidades alimentares no comércio local. O WFP também trabalha em parceria com governos para apoiar populações vulneráveis por meio de intervenções como programas de proteção social, acesso a serviços de alimentação e nutrição nas escolas e apoio às cadeias de fornecimento alimentar.

Estimamos que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda no mundo [ou seja, fome] pode aumentar 80% neste ano. Por isso, o WFP faz um apelo para levantar US$ 4,9 bilhões de dólares nos próximos seis meses, para que consiga continuar o seu trabalho humanitário em 83 países.

Com o fechamento das escolas, cerca de 1,6 bilhão de crianças foram afetadas e, no pico da crise, quase 370 milhões de crianças ficaram sem acesso à alimentação escolar. Por isso, temos trabalhado em parceria com governos para implementar alternativas, como a distribuição de comida, vouchers ou dinheiro.

Aqui no Brasil, por exemplo, o governo autorizou a continuidade do repasse de verbas para as escolas públicas para serem distribuídos aos alunos que estão sem aula. O Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que é referência mundial, atende mais de 40 milhões de estudantes no país. Em paralelo, alguns estados e municípios anunciaram medidas alternativas para atender às famílias beneficiadas pelo Pnae, como esquemas emergenciais de transferência de renda.

Quais são as diferenças e desafios ao atender populações refugiadas, que fugiram de seus países, e a populações deslocadas internamente?

Em muitos dos países onde o WFP está presente, há pessoas refugiadas e deslocadas internamente. Durante emergências e crises de longo prazo, o WFP trabalha em estreita colaboração com o Acnur (Agência da ONU para Refugiados) para fornecer alimentos a pessoas deslocadas em todo o mundo, especialmente grupos vulneráveis, como mulheres e crianças. Nesses casos, o WFP provê assistência alimentar direta, mas também realiza atividades destinadas a estimular a produção de alimentos por refugiados ou à geração de empregos.

Quando a pandemia começou a avançar, o WFP agiu para que as operações continuassem com o mínimo de mudanças. Foram feitos ajustes para garantir a segurança dos beneficiários, dos parceiros e dos funcionários. Os procedimentos de distribuição de alimentos foram revistos para diminuir aglomeração, com atendimento mais espaçado, nova disposição de espaços físicos e aumento do número de pontos de distribuição. Também houve medição de temperatura e estações de lavagem das mãos. O WFP também passou a fornecer assistência alimentar de outras maneiras, usando kits de comida, vouchers ou refeições prontas para entrega.

E o Brasil? O que podemos esperar em termos de agravamento de um quadro de segurança alimentar? Quais são as diferenças e semelhanças que o senhor vê no caso da fome no nosso país, quando comparada com outros países de porte e problemas econômicos e sociais semelhantes?

O Brasil não é diferente de outros países na mesma situação. Os efeitos secundários da pandemia, de ordem econômica e que atingirão também outras economias podem levar milhares de volta para a pobreza. Muitas dessas pessoas já estão sendo economicamente afetadas, dada a natureza informal do trabalho ou do desemprego causado pelas medidas de isolamento. Essas pessoas precisarão de garantia de acesso a políticas públicas que garantam meios de subsistência, dignidade e reinserção.

A alimentação escolar, por exemplo, precisou de adaptações durante o período de fechamento de escolas, para garantir que os beneficiários continuem recebendo alimentos mesmo sem aulas presenciais. A vantagem do Brasil em relação a alguns outros países é que já existem essas políticas públicas, já consolidadas e operada por agentes públicos altamente capacitados e preparados para eventuais expansões.

É importante lembrar que o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os programas de microcrédito para pequenos empreendedores, a transferência de renda para os mais vulneráveis, por exemplo, são investimentos públicos poderosos. Todos podem atuar como mecanismos decisivos no enfrentamento de crises econômicas, sociais e sanitárias.

Tags: