No final da semana passada, o governo do Mali determinou às forças de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) que se retirassem do país, onde a influência da Rússia é crescente. Não se trata de caso isolado, e sim de tendência continental escorada em uma conhecida arma russa: a desinformação. Tal situação foi identificada pelo governo da França, que perdeu espaço no continente nos últimos anos e então desenvolveu uma estratégia para combater a campanha liderada pelos mercenários do Wagner Group para seduzir a população da África e jogá-la contra o Ocidente. As informações são da agência Reuters.
O governo francês é o principal alvo da campanha de desinformação russa no continente africano, onde Paris foi durante muitos anos o grande parceiro sobretudo no combate a grupos extremistas islâmicos. Um caso que ligou o alerta na França foi o de um ataque, em março deste ano, em uma mina de ouro na República Centro-Africana, um dos países em que o Wagner primeiro se instalou na África.
Nove cidadãos chineses foram mortos na ação, e rapidamente passou a circular um vídeo na internet que atribuía a culpa a forças francesas. As imagens mostram inclusive um membro de um grupo rebelde local dizendo que “os franceses querem expulsar o Wagner da África”. Rastreado, o vídeo levou a um grupo de contas criado no Facebook e no Twitter para semear conteúdo pró-Moscou.
Ação governamental
Atualmente, a França conta com uma equipe de cerca de 20 pessoas, entre diplomatas, ex-jornalistas, analistas de dados e observadores de mídia, que atua no combate à desinformação russa. Parte de uma estratégia para recuperar o espaço perdido nos últimos anos na África, comprometendo décadas de esforço diplomático para melhorar a imagem francesa no continente.
A equipa atua sob a coordenação do Serviço de Vigilância e Proteção contra a Interferência Digital Estrangeira, o Viginum, do Ministério das Relações Exteriores. Segundo dois diplomatas que fazem parte do esforço e pediram para não serem identificados, foram mapeadas cerca de cem contas supostamente ligadas ao Wagner Group e focadas em divulgar conteúdo antifrancês na internet.
Quando identifica conteúdo suspeito, a equipe nem sempre age. Material com repercussão reduzida é simplesmente ignorado, também para não dar mais força à mentira. Em outros casos, o governo prepara uma contraofensiva digital para desmentir o conteúdo falso. Já contas russas mais ativas e eficientes são reportadas às redes sociais.
O Wagner Group nem se esforça para desmentir a acusação mais ampla de que usa a desinformação a seu favor. Em fevereiro deste ano, o empresário Evgeny Prigozhin, que chefia a organização, admitiu ter sido o criador de uma famosa “fazenda de trolls” que ajuda a espalhar a propaganda estatal russa na internet.
Questionado em sua conta no Telegram, ele não se eximiu: “Nunca fui apenas o financiador da Internet Research Agency (IRA). Eu inventei, criei, gerenciei por muito tempo. Foi fundada para proteger o espaço de informação russo da propaganda grosseira e agressiva da narrativa antirrussa do Ocidente”.
A IRA chegou a ser sancionada pelo governo norte-americano em 2018. A instituição é acusada de criar um enorme número de perfis falsos na internet que se passam por pessoas legítimas com o objetivo de disseminar narrativas e estabelecer debates que beneficiem Moscou e prejudiquem rivais ocidentais.
Inclusive, documentos da inteligência norte-americana vazados no início deste ano mostram que o Wagner Group chegou a trabalhar diretamente com o presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadera, para estabelecer uma campanha de influência contra o Ocidente. Não foi possível confirmar, no entanto, se ela foi efetivamente colocada em prática
Colonialismo
A campanha de Moscou contra a França também ocorre pelos canais oficiais. Em maio, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, acusou Paris de interferir nos assuntos internos das nações africanas há décadas, derrubando governos e construindo “um sistema neocolonial de influência”.
O presidente francês Emmanuel Macron aceitou parcialmente a acusação russa, dizendo que certas críticas ao país dele “são verdadeiras”. Porém, alegou que o colonialismo ficou no passado. “Não estamos mais lá para substituir um golpe de Estado ou um processo político fracassado”, afirmou.
De toda forma, Moscou vem obtendo sucesso. Em Burkina Faso, o governo militar chegou a expulsar os correspondentes de dois grandes jornais franceses, Le Monde e Libération. Anteriormente, o capitão Ibrahim Traoré, no comando do país desde o desde o golpe de Estado de setembro de 2022, já havia suspendido as transmissões das rede estatais francesas France 24 e a Radio France International (RFI).
Na visão de analistas, a França terá muito trabalho para virar o jogo. Jean Gaspard Ntoutoume Ayi, vice-presidente da União Nacional, partido de oposição do Gabão, antiga colônia francesa, pensa dessa forma. “Não estou dizendo que Macron é arrogante em relação à África, mas há muita falta de jeito”, disse ele.
Michael Shurkin, diretor de programas globais da 14 North Strategies, uma consultoria de negócios focada na África, é outro que vê Paris em desvantagem. “Eles basicamente perderam a guerra da comunicação”, afirmou, destacando a desconfiança dos africanos quanto às reais intenções da França no continente.