Mali prioriza parceria com o Wagner Group e expulsa a missão de paz da ONU

Com a saída da Minusma, país africano tende a enfrentar 'anarquia e guerra civil', segundo analista que serviu às Nações Unidas na África Ocidental

Na última sexta-feira (16), o governo do Mali solicitou à missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no país africano, a Minusma, que retire seus soldados do território maliano “sem demora”. Embora não tenha confirmado abertamente, Bamako priorizará a partir de agora a parceria firmada com os mercenários russos do Wagner Group.

Abdoulaye Diop, ministro das Relações Exteriores do Mali, disse em pronunciamento dirigido ao Conselho de Segurança da ONU que a Minusma “se tornou parte do problema ao alimentar as tensões intercomunitárias” na nação, de acordo com relato da rede BBC.

Na visão do governo maliano, os 13 mil homens destacados pela Minusma falharam na missão de ajudar a policiar a nação africana, afetada na última década pela insurgência islâmica. O governo não fala abertamente sobre a relação com o Wagner, mas a parceira já deixou de ser segredo e foi inclusive alvo de denúncia formal de abusos dos direitos humanos.

No mês passado, um relatório fruto de investigação conduzida pela ONU responsabilizou as forças armadas do Mali, apoiadas por militares estrangeiros, pelo massacre na aldeia de Moura, em março de 2022, que terminou com a morte de cerca de 500 pessoas. O documento levou a relação entre Bamako e as Nações Unidas ao limite.

O relatório apontou a presença no massacre de “homens brancos armados” que falavam uma língua desconhecida. Embora não tenham sido identificados no relatório, esses paramilitares possivelmente pertencem ao Wagner Group.

Assimi Goita, coronel que governa o Mali, escoltado pelo exército (Foto: Twitter/PresidenceMali)

Agora, Diop afirma que existe uma “crise de confiança entre as autoridades malianas e a Minusma”, por isso “o governo maliano pede a retirada sem demora” da missão de paz.

De acordo com a agência Reuters, pesa também o fato de que o governo e a ONU têm visões diferentes quanto à função dos soldados de paz. Bamako queria que a Minusma atuasse como uma força de combate contra os extremistas islâmicos, mas as Nações Unidas argumentaram que tais ações não fazem parte das diretrizes da Minusma. O Wagner, por sua vez, realiza tais funções.

Na visão de Ahmedou Ould-Abdallah, ex-ministro das Relações Exteriores da Mauritânia, que no passado serviu como alto funcionário da ONU na África Ocidental e hoje dirige um think tank, o Mali terá sérios problemas sem a Minusma. “Se sair, haverá anarquia e guerra civil, especialmente contra os civis e os fracos. Se ficar, estará quase desacreditada”, disse ele.

A Minusma é a missão de paz que mais perdeu homens entre todas as que a ONU mantém no mundo, com 170 mortes em combate desde que se instalou no Mali, em 2013. A saída dela se segue à expulsão das tropas francesas, que também tinham um acordo com Bamako para ajudar no combate à insurgência islâmica e foram expulsas no ano passado.

Por que isso importa?

O Mali vive um período de instabilidade que começou com o golpe de Estado em 2012, quando grupos rebeldes e insurgentes islâmicos tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos ingressos dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem os militares na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Em meio à instabilidade política, cresceu no país a presença de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e principalmente ao Estado Islâmico (EI), o que levou a uma explosão de violência nos confrontos entre extremistas e militares, com milhares de civis entre as vítimas.

Os conflitos, antes concentrados no norte do Mali, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. Assim, a região central maliana se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra as forças do governo.

A situação tornou-se ainda mais delicada devido à retirada das tropas da França, que até agosto de 2022 colaboravam com o governo nacional nas operações de contraterrorismo. A decisão de Paris de evacuar seus militares gerou dúvidas quanto à capacidade de o país africano sustentar os avanços obtidos na luta contra os insurgentes.

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