Diversidade étnica ajuda e espiões russos usam a nacionalidade brasileira para se esconder

Especialista em segurança internacional diz que o país tornou-se local para "descanso" ou esconderijo para agentes já descobertos ou que estejam sendo procurados

Por André Amaral

Rússia vem sofrendo uma série de situações embaraçosas em suas operações de inteligência estrangeira, com centenas de supostos espiões a serviço do Kremlin sendo expulsos ou acusados ​​de espionagem em países ocidentais. O Brasil está no mapa dessas ações, como nos casos de Sergey Vladimirovich Cherkasov, que se passou em 2022 por um brasileiro candidato a estagiário no TPI (Tribunal Penal Internacional), em Haia, na Holanda, e Maria Tsalla, apontada pelos serviços de inteligência gregos como a espiã russa Irina Alexandrovna Smiereva, que dizia ter “origens brasileiras”.

No caso de Cherkasov, de 36 anos, o espião usou uma identidade brasileira falsa – se fazendo passar por Viktor Muller Ferreira, 33 anos – para tentar obter acesso no TPI a informações sobre supostos crimes de guerra cometidos na Ucrânia e na Geórgia em 2008. Ele foi preso pelo serviço secreto holandês (AIVD).

Com formação de excelência no currículo, que incluía a prestigiada Universidade John Hopkins, nos EUA, Cherkasov era parte de um plano da GRU (inteligência militar russa) “de longo prazo e de vários anos que custou [à Rússia] muito tempo, energia e dinheiro”.

Maria Tsalla, cujo nome verdadeiro seria Irina Smiereva, escondia parte do rosto nas redes sociais, onde postou imagens no Brasil (Foto: Redes sociais/reprodução)

Depois de desmascarar Cherkasov, o governo holandês o declarou “estrangeiro indesejável” e o deportou para o Brasil, onde ele já morou e enfrenta acusações criminais. Ele acabou indiciado por falsidade ideológica e uso de documento falso (passaporte). Pegou 15 anos em regime fechado. O governo russo diz que ele é um perigoso traficante de heroína e solicitou sua extradição.

No início deste mês, o Departamento de Justiça dos EUA acusou Cherkasov de entrar no país com uma identidade falsa com a o objetivo de coletar informações sobre cidadãos norte-americanos. Ele teria feito o mesmo em Israel, onde conseguiu se encontrar com uma importante liderança política.

Segundo o jornal Times of Israel, enquanto esteve nos EUA, o agente russo supostamente se conectou com um funcionário do Departamento de Estado, um funcionário do Capitólio, um “especialista em Israel”, um professor da Academia Naval dos EUA e outros para coletar informações sobre a política local em relação a uma possível invasão russa da Ucrânia nos meses e anos que antecederam a guerra, a acusação alega.

Em sua passagem por Israel em janeiro de 2020, um pouco antes das eleições legislativas no país e sob o pretexto de uma viagem a serviço de uma universidade, Cherkasov tentou reunir informações sobre israelenses. Lá, ele teve um encontro com Avigdor Liberman, chefe do partido ultranacionalista Yisrael Beiteinu – constituído essencialmente por imigrantes oriundos da antiga União Soviética. A assessoria de Liberman nega o encontro e alega que nada do tipo consta em seus registros pessoais.

O Departamento de Justiça dos EUA indiciou Cherkasov por atuar como agente estrangeiro, além de fraude eletrônica, fraude bancária e fraude de visto, entre outras acusações.

Casal de espiões

O jornal britânico The Guardian dedicou uma reportagem à singular história da espiã russa Maria Tsalla – cujo nome verdadeiro seria Irina Smiereva – e seu marido Daniel Campos, que mistura encontros românticos com espionagem. Ambos foram identificados na semana passada pelo Serviço Nacional de Inteligência da Grécia (EYP) como um suposto casal de espiões que permaneceu um tempo no Brasil a serviço do Kremlin.

O espião russo, que se identificava como o austro-brasileiro Gerhard Daniel Campos Wittich, conduzia um negócio de impressão 3D no Rio de Janeiro, fazendo, entre outras coisas, esculturas de resina para a Marinha do Brasil (de quem recebeu R$ 27 mil pelos serviços) até dezembro passado, quando desapareceu a caminho da Malásia.

Quando o caso Maria Tsalla veio à tona na Grécia, como foi mostrado pelo jornal O Globo, foi revelado que Campos não era, como alegava, filho de uma austríaca com uma brasileira criado em Viena, mas sim um espião russo “ilegal” casado com ela, que havia recebido um longo treinamento especial na Rússia para emular uma identidade falsa e coletar informações.

Um alto funcionário grego, que falou sob condição de anonimato, deu mais detalhes sobre o caso.

“Temos poucas dúvidas de que eles eram casados”, disse a fonte, acrescentando que era um caso incomum. Ele afirmou que a dupla planejou encontros na Grécia, Chipre e França nos últimos tempos, que serviram de cenário tanto para “momentos românticos” como para trabalho.

Na época do desaparecimento, Daniel Campos estava quitando um prédio comercial que havia comprado no centro do Rio de Janeiro, a menos de 50 metros do Consulado dos EUA. Enquanto ele se preparava para pagar a última parcela, teria sido chamado para fugir, em meio a temores de que as prisões na Eslovênia pudessem colocar ele e outros espiões em risco.

Já a misteriosa Irina Smiereva – integrante do notório programa “Illegals” (ilegais, em tradução literal), uma rede de espionagem feita por agentes russos – era uma espiã ativa e com movimentos na Grécia e em outros países da Europa, segundo o jornal grego Proto Thema. Sem nenhum contato com a embaixada russa, ela é suspeita de atuar separadamente dos agentes oficiais, empreendendo missões perigosas. Entre as atividades, ela fotografou pessoas e instalações.

As contas de Maria Tsalla no Facebook e no Instagram, plataformas em que ela se apresentava como fotógrafa, seguem abertas. Nas imagens publicadas, ela esconde parte do rosto. Além do Rio de Janeiro, ela esteve em Ouro Preto.

Brasil é “esconderijo”, diz especialista em Segurança Internacional

Segundo o professor de relações internacionais da ESPM, Gunther Rudzit, doutor em Ciência Política pela USP e um dos maiores acadêmicos do país na área de segurança internacional, para os serviços de inteligência ocidentais, não é novidade a utilização de passaportes brasileiros, uma vez que o Brasil tem uma população multiétnica, fazendo com que pessoas com os mais diferentes perfis possam se passar por locais.

“O país também é conhecido como local para ‘descanso’ ou esconderijo para agentes já descobertos ou que estejam sendo procurados, uma vez que, pelas mesmas razões, a pessoa pode ‘desaparecer’ no meio da multidão em um dos grandes centros, em especial São Paulo”, explicou Rudzit.

De acordo com Rudzit, essa descoberta só reforça essas visões e pode levar a uma pressão para que Brasília aumente sua capacidade de contra-inteligência.

Prisões

Serviços de segurança em toda a Europa estão no encalço de supostos agentes russos que operam no continente, uma caça ampliada desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022. As agências de inteligências ocidentais fizeram esforços “bastante combinados” para interromper as ações de espionagem de Moscou, expulsando metade dos espiões russos desde o início da guerra, disse no ano passado Richard Moore, chefe da agência de espionagem britânica SIS (Serviço Secreto de Inteligência, da sigla em inglês), o popular MI6.

Em outubro, autoridades norueguesas prenderam o agente do GRU Mikhail Mikushin, que chegou ao país em dezembro de 2021 dizendo ser brasileiro e usando o nome José Assis Giammaria. Ele solicitou à universidade que o autorizasse a fazer parte de um grupo de estudos sobre a segurança na região do Ártico.

“Solicitamos que um pesquisador brasileiro da Universidade de Tromso seja expulso da Noruega porque acreditamos que ele representa uma ameaça aos interesses nacionais fundamentais”, disse à época Hedvig Moe, vice-chefe do Serviço de Segurança da Polícia Norueguesa (PST).

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