Por André Amaral
A semana que passou foi turbulenta para a diplomacia brasileira. Tudo por causa do atracamento de dois navios de guerra iranianos no porto do Rio de Janeiro no último sábado (25), o que gerou reprimendas dos Estados Unidos, inclusive com ameaça de sanções feitas por um senador republicano. O motivo: as alegações de Washington de que o Irã é um “Estado terrorista” que viola direitos humanos e pratica comércio ilegal de armas para grupos extremistas.
Israel seguiu o exemplo. Na quinta-feira (2), Jerusalém engrossou as críticas da Casa Branca e também condenou o governo brasileiro pelos mesmos motivos, além do histórico de acusações de sabotagem marítima, que são mútuas. Ambos os países estão presos há décadas em um conflito ao estilo da Guerra Fria. Um dos casos recentes envolveu o petroleiro Pacific Zircon, pertencente ao empresário israelense Idan Ofer, que foi alvo de um ataque realizado por um drone iraniano em dezembro quando navegava pela costa de Omã.
O país liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu avaliou “o atracamento de navios de guerra iranianos no Brasil como um desenvolvimento perigoso e lamentável”, publicou no Twitter o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Lior Haiat. “O Brasil não deve conceder nenhum prêmio a um Estado maligno”.
Violência de gênero
Em meio a essas questões espinhosas atuais, a luso-iraniana Sanaz Zadegan, uma diretora digital de 32 anos, nascida em Portugal como filha de pais iranianos, mas que morou no Irã até os 8 até imigrar em definitivo para o país europeu em 1999, carrega marcas fortes do período em que viveu sob a mão de ferro do regime da terra de seus ancestrais. E reprova a decisão do Brasil de acolher as embarcações.
“Nos poucos anos que vivi no Irã, tenho três memórias muito sólidas da vida fora do normal que se vive lá, especialmente como menina”, contou ela à reportagem de A Referência.
Entre os exemplos que permanecem vívidos na lembrança, ela detalhou que as escolas são separadas até a faculdade, sendo os educandários femininos divididos dos masculinos.
“Mesmo dentro da escola feminina, onde não há nem um único homem presente, éramos obrigadas a andar de hijab. Eu, com os meus meros sete anos, não entendia o por quê e tirava o véu na escola”, recorda.
Segundo ela, tal situação tornou-se problemática e a sua mãe foi chamada à escola.
“O normal é que os pais sejam chamados à escola quando fazem alguma asneira ou têm más notas. Mas não no Irã. Eu era uma aluna exemplar, uma das melhores da escola. Mesmo assim, minha mãe foi chamada à escola para lhe dizerem que eu deveria usar o véu”, lembra.
Como ela não queria que sua mãe fosse chamada novamente, passou a seguir a cartilha das vestes islâmicas. Mas acabou percebendo que tudo era só parte de um problema. O culto à personalidade dos aiatolás ainda despertaria na jovem estudante uma rebeldia precoce contra o regime.
“Depois veio a questão das fotografias do (Ruhollah) Khomeini e (Ali) Khamenei, respectivamente o primeiro líder supremo e o atual. Como é típico de ditaduras, para além de todas as salas de aulas terem a fotografia deles, todos os livros tinham as imagens deles. Eu as arrancava. Uma vez, uma professora reparou. Novamente chamaram a minha mãe, mas desta vez, tivemos a ameaça de que a terceira atitude considerada antirrevolucionária que eu tivesse, teríamos a Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC, na sigla em inglês) para nos investigar”, conta.
Felicidade cancelada
Sanaz conta que o Irã é como uma prisão gigante. O que é considerado normal em boa parte do mundo, lá, é proibido.
“É proibido dançar nas ruas, é proibido andar de mãos dadas, é proibido as mulheres vestirem o que lhes apetece, é proibido mulheres irem ao estádio de futebol, beber álcool, festas mistas… Enfim, ser feliz é proibido”, resumiu.
Sobre a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que visitava Teerã quando foi abordada pela “polícia da moralidade” por não usar “corretamente” o hijab, o véu obrigatório para as mulheres, Sanaz observa que foi um acumular de “44 anos de injustiça, desespero e ânsia por uma vida normal”, fazendo menção à Revolução Islâmica de 1979.
“Ver uma menina de 22 anos intubada morrer nas mãos da policia da moralidade, que audita o dia a dia das mulheres, foi mesmo um balde de água fria em todos. O slogan “Zan, Zendegi, Azadi”, ou, “Mulher, Vida, Liberdade”, tocou todos os iranianos e serviu como um grande acordar”, contou, fazendo menção aos protestos populares que irromperam em setembro.
Ao ser perguntada sobre o papel das mulheres iranianas na insurreição, ela se definiu como uma “ativista por necessidade”. “O que tento fazer é ser eco da voz dos meus compatriotas, voz essa que está a ser estrangulada pela República Islâmica com violência, execuções, violações e tortura”.
Sanaz também deu sua opinião sobre se vê no horizonte um caminho para o Irã ter, um dia, um sistema democrático de governo.
“A República Islâmica não tem volta a dar. A partir do momento em que se tem sangue de 70 crianças nas mãos nos últimos seis meses, o que há para reformar? Não há reforma possível”.
Ela destacou que uma das grandes frentes da revolução, o movimento “Mulher Vida Liberdade”, tem sido protagonizado por jovens estudantes.
“As mulheres estão a liderar esta revolução. As mulheres foram as primeiras vítimas da República Islâmica, portanto é um quanto que poético que é pelas mãos delas que este governo vai cair. Não tenham dúvidas, o fim da República Islâmica está a chegar”, enfatizou.
Sobre o fato de Brasília ter concedido permissão para o atracamento das embarcações Iris Makran e Iris Dena no porto do Rio de Janeiro, onde têm permissão para ficar até este sábado (4), ela se posicionou com veemência:
“Desaconselho qualquer país a continuar a apostar neste regime. O Brasil é um desses países. Ainda que não esteja claro o que o Brasil tem a ganhar a deixar dois navios de guerra de um governo terrorista atracar nos seus portos”.
E finalizou com algum otimismo que lhe resta: “Uma coisa é certa, um Irã democrático vai trazer boas notícias para o mundo todo”.
Diplomacia
O sinal verde do comando da Marinha brasileira para o atracamento ignorou a recomendação da Casa Branca, que aplicou sanções unilaterais ao Irã, bem como deu de ombros para a manifestação da embaixadora norte-americana no Brasil, Elizabeth Bagley, que no dia 15 de fevereiro disse a repórteres que “esse navios não deveriam atracar em nenhum lugar”.
Brasília não reconhece as sanções unilaterais dos Estados Unidos ao Irã, impostas quando Washington abandonou o acordo nuclear em 2018 durante o governo Trump, firmado três anos antes na Era Obama para que os iranianos deixassem de investir em armas nucleares. Isso porque o país adotou o princípio de somente legitimar as condenações aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), o que serviu como base para aprovar o pedido de Teerã para a visita de sua frotilha.
Para Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o que serviu levou o Brasil a tomar uma decisão nesse sentido foi o princípio da não intervenção, o respeito à soberania e “a tradição brasileira de se colocar como um mediador, um ator que busca a pacificação e que efetivamente não adota sanções unilaterais”, disse ele à reportagem de A Referência.
A diplomacia com o Irã é um dos mais lembrados esforços de Lula pelo fortalecimento da posição internacional do Brasil durante suas administrações anteriores. Em 2010, durante o segundo mandato do líder petista, ele viajou para Teerã para se encontrar com o então presidente ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad – conhecido pelo discurso linha-dura e pela nuclearização –, buscando mediar um acordo nuclear entre o Irã e os Estados Unidos.
Repercussão no Congresso dos EUA
O senador republicano pelo Texas Ted Cruz, por sua vez, fez críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sugeriu sanções ao país. As informações são da rede Al Arabiya.
“O atracamento de navios de guerra iranianos no Brasil é uma evolução perigosa e uma ameaça direta à segurança dos americanos”, disse o parlamentar em comunicado nas suas redes sociais.
O político, que é membro da Comissão de Comércio, Ciência e Transporte do Senado, enfatizou que as embarcações Iris Makran e Iris Dena já foram sancionadas por Washington, o que significa que o porto do Rio de Janeiro, onde a frotilha tem permissão para permanecer até este sábado (4), agora corre o risco de sofrer penalidades dos EUA. Segundo Cruz, o mesmo poderá valer para empresas brasileiras e estrangeiras que prestaram serviços aos navios.
Além da manifestação de Cruz, Washington, em meio à crescente tensão com Teerã, avaliou a situação como uma “provocação” do rival, alegando que a República Islâmica fomenta o comércio de produtos ilegais e o terrorismo e agora quer demonstrar poder naval e ampliar sua presença marítima internacional.
Por meio do contra-almirante Hamzeh Ali Kaviani, a Marinha iraniana saudou a chegada dos navios ao porto brasileiro do Rio de Janeiro
“O poderio militar do Irã está aumentando a cada dia, apesar de todas as pressões contra a República Islâmica nos últimos 43 anos”, disse a autoridade militar à mídia estatal iraniana Press TV, aparentemente fazendo menção à missão de aumentar a capacidade bélica e a presença marítima internacional, sob ordens do líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei.
Ativistas também reprovaram
A repercussão foi negativa também entre ativistas de direitos humanos que monitoram o caos social no país do Oriente Médio.
Hadi Ghaemi, diretor-executivo do Center For Human Rights in Iran (CHRI), uma organização independente sediada em Nova York, conversou com A Referência e expôs o ponto da vista da entidade a respeito da posição do Brasil.
“Imaginamos que o presidente Lula, ao tomar esta decisão, acredita que está demonstrando uma política externa independente e promovendo um mundo multipolar. Infelizmente, este não é o caso de modo algum”, disse Ghaemi.
O diretor do CHRI observou que Brasília pode manter uma política externa independente, mas não precisa acalmar ou fortalecer as relações com o governo do Irã, que, segundo ele, “ficou claro que não tem legitimidade interna”.
“Este é um erro trágico e um tapa na cara de milhões de mulheres e meninas iranianas que protestaram no mês passado”, acrescentou.
As embarcações
Com 228 metros de comprimento, o imponente IRIS Makran é o maior navio militar da Marinha da República Islâmica do Irã. A embarcação, que no passado era usada como um navio petroleiro, foi convertida em base expedicionária e serve como plataforma para múltiplas funções. Entre elas, é um porta-helicópteros.
O IRIS Makran é o maior navio de guerra da frota naval iraniana (Foto: WikiCommons)
Já a fragata IRIS Dena, projetada e construída no Irã, é igualmente usada para uma variedade de atividades, incluindo defesa costeira, guerra antissubmarina e patrulha marítima. Ela é equipada com canhões e tem capacidade para disparar misseis e torpedos.
Segundo o Itamaraty, a visita das embarcações celebra os “120 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Irã”. O pedido partiu da Embaixada do Irã em Brasília.
Por que isso importa?
A turbulência diplomática protagonizada por Brasil e Irã ocorre em meio à agitação social que domina o país do Oriente Médio. Nos últimos meses, protestos populares tomaram as ruas iranianas após a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que visitava Teerã quando foi abordada pela “polícia da moralidade” por não usar “corretamente” o hijab, o véu obrigatório para as mulheres. Sob custódia, ela desmaiou, entrou em coma e morreu três dias depois.
Os protestos começaram no Curdistão, província onde vivia Mahsa, e depois se espalharam por todo o país, com gritos de “morte ao ditador” e pedidos pelo fim da república islâmica. As forças de segurança iranianas passaram a reprimir as manifestações de forma violenta, com relatos de dezenas de mortes.
No início de outubro, a ONG Human Rights Watch (HRW) publicou um relatório que classifica o regime iraniano como “corrupto e autocrático”, denunciando uma série de abusos cometidos pelas forças de segurança na repressão aos protestos populares.
Além dos mortos e feridos, a HRW cita os casos de “centenas de ativistas, jornalistas e defensores de direitos humanos” que, mesmo de fora dos protestos, acabaram presos pelas autoridades. Condena ainda o corte dos serviços de internet, com plataformas de mídia social bloqueadas em todo o país desde o dia 21 de setembro, por ordem do Conselho de Segurança Nacional do Irã.