Aparelho da Huawei no Palácio da Alvorada gera dúvidas quanto à segurança digital no governo brasileiro

Presidente Jair Bolsonaro usa distribuidor de sinal de internet da empresa chinesa, questionada em todo o mundo pela relação nebulosa com Beijing

Na quarta-feira (29) pela manhã (horário de Brasília), o jornalista norte-americano Tucker Carlson, da emissora Fox News, postou em sua conta no Twitter uma foto com o presidente do Brasil Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada. A imagem gerou um debate paralelo quando alguns internautas alertaram para a presença, no teto da sala, de um aparelho da empresa chinesa Huawei, cuja confiabilidade é questionada em todo o mundo devido à suposta proximidade com o governo da China e ao consequente risco de espionagem.

O equipamento em questão é um ponto de acesso que distribui o sinal de internet sem fio. É semelhante a um roteador, mas com apenas uma porta de entrada. No Brasil, o modelo custa na faixa de R$ 2 mil. O jornalista e pesquisador Leonardo Coutinho foi um dos primeiros a questionar o uso do aparelho, referindo-se à possibilidade de Beijing ter acesso a informações confidenciais do governo brasileiro.

A fim de analisar a questão, A Referência ouviu o professor Gilberto Sudré, perito em computação forense e especialista em segurança da informação. Na opinião dele, o risco é real, mas o eventual prejuízo dependeria do nível de segurança da rede na qual o aparelho está instalado.

“Nesses equipamentos que têm programa embarcado, a gente não sabe a princípio o que tem ali”, diz o especialista. “Obviamente, não é uma garantia de que tem alguma coisa errada, mas a gente tem uma desconfiança. Quando a gente fala de segurança da informação, o risco é algo que deve ser avaliado”.

Segundo ele, o caso é particularmente delicado por se tratar do presidente da República. “Uma coisa é na minha casa. Outra coisa é usar num gabinete crítico, seja gabinete do presidente ou de um executivo de uma grande empresa”, afirma, destacando a necessidade de uma análise de segurança minuciosa. “Alguém lá da segurança do presidente deve ter feito isso, inclusive num ambiente crítico como esse”.

A ameaça a se evitar, destaca Sudré, é justamente a levantada por Coutinho: possível extração de dados através de um backdoor, porta de acesso não documentada que permite ao administrador acessar o sistema.

“Quando eu tenho uma desconfiança, os clientes me contratam justamente pra analisar uma questão como essa. Aí você analisa o que aquele software envia para o mundo externo. Faz sentido jogar aquela informação para aquele destino?”, explica o perito.

Dados roubados

Um caso em particular se enquadra exatamente nesse cenário. Em janeiro de 2017, a União Africana (AU, da sigla em inglês) descobriu que os servidores de sua sede, na capital etíope Adis Abeba, enviavam diariamente, durante a madrugada, dados sigilosos a um servidor em Xangai, na China, e que o prédio estava repleto de microfones escondidos. Os servidores foram trocados, mas um problema semelhante se repetiu em 2020, quando os novos servidores foram invadidos por hackers chineses que roubaram vídeos de vigilância das áreas interna e externa.

Não por coincidência, a sede da AU havia sido construída com financiamento chinês, por uma construtora chinesa. E os servidores originais, aqueles de 2017, eram chineses. Esses episódios, com os quais Beijing sempre negou ter relação, ajudam a explicar a desconfiança generalizada com a infraestrutura digital proveniente da China, um temor que aumenta com a chegada da tecnologia móvel 5G e a forte presença global da Huawei no setor.

Em suma, os governos ocidentais temem ser alvo do mesmo incidente verificado na Etiópia, com os aparelhos da Huawei extraindo dados das redes nas quais estão instalados e enviando-os ao governo chinês. Assim, a empresa foi proibida de marcar presença nas redes 5G de países como EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Portugal.

Uma questão legal fortalece as suspeitas: a Lei de Inteligência Nacional da China, de 2017, determina que as empresas nacionais devem “apoiar, cooperar e colaborar com o trabalho de inteligência nacional”. Ou seja, a Huawei pode ser legalmente obrigada a trabalhar para o Partido Comunista Chinês (PCC).

O presidente Jair Bolsonaro, o jornalista Tucker Carlson e o roteador da Huawei (Foto: montagem)

Sudré, no entanto, diz que essa desconfiança não está comprovada. “A Huawei tem uma série de suspeitas. Mas a gente não sabe se o governo dos EUA levantou a suspeita por uma questão realmente tecnológica ou se é econômica”.

O advogado doutor Ericson M. Scorsim, consultor em Direito Regulatório das Comunicações e autor do livro ‘Jogo geopolítico das comunicações 5G: Estados Unidos e China: impacto no Brasil’, levantou essa mesma dúvida em entrevista à reportagem em dezembro de 2021. “Para os Estados Unidos, a China é um adversário e representa uma ameaça à sua liderança global. Inclusive, representa um incomodo, à medida que os Estados Unidos não têm uma empresa líder global em 5G”.

Brasil precavido

No Brasil, embora a questão não seja ignorada, o tratamento dedicado à Huawei é bem mais brado, e a companhia marca forte presença no nosso território. De acordo com conteúdo patrocinado publicado em portais e sites de jornais brasileiros, como O Globo, em maio de 2021, a Huawei diz que é responsável por mais de cem mil quilômetros de fibra óptica instalados no país.

Entretanto, o próprio governo brasileiro tomou certas precauções quando estabeleceu os parâmetros da futura rede 5G. A fim de reduzir o impacto de eventuais brechas de segurança, definiu a criação de uma rede governamental exclusiva, sem a presença de infraestrutura chinesa.

“Hoje, a Huawei não está apta a participar da rede privativa, segundo o que foi colocado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e pela nossa portaria”, disse o ministro das Comunicações, Fábio Faria, no início de novembro, quando foi realizado o leilão das bandas de 5G.

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