Após tentar acessar o portal de notícias Iwacu em outubro, na pequena República do Burundi, na África, um funcionário do site de jornalismo independente recebeu uma mensagem na tela: “Nous ne parvenons pas à trouver ce site” [“Não conseguimos encontrar este site”]. O erro causou estranhamento, já que o órgão regulador da mídia local havia prometido desbloqueá-lo em fevereiro. O país está sob sanções dos Estados Unidos e da União Europeia (UE) por violações aos direitos humanos ao suprimir de forma violenta protestos de rua em 2015.
O fato levanta a hipótese de uma violação à liberdade de imprensa. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ, da sigla em inglês) fez tal questionamento com base em um relatório publicado pela empresa PrivacyCo em agosto intitulado “O Estado de Vigilância da China: Um Projeto Global”, que identificou que redes da pequena nação africana estariam utilizando serviços da Huawei para bloquear o Iwacu e outros veículos locais de imprensa.
Ao CPJ, os co-autores do estudo, Valentin Weber e Vasilis Ververis, que concorrem a bolsas de doutorado em grandes universidades europeias, relataram que a pesquisa desenvolvida por ambos rastreou equipamentos da gigante chinesa das telecomunicações em 72 países. Dezoito deles usavam dispositivos conhecidos como middleboxes, que transformam, inspecionam, filtram e manipulam o tráfego para outros fins que não o encaminhamento de pacotes.
Segundo os especialistas, nas mãos erradas, um middlebox pode desviar os visitantes para um site nocivo, projetado para roubar senhas ou instalar malware, por exemplo.
A investigação chegou a Cuba, onde o relatório apontou que o único provedor estatal de serviços de Internet, o ETECSA, estaria usando a tecnologia da Huawei para bloquear o site independente Cubanet – veículo frequentemente sujeito a restrições do Estado –, entre outros.
Esse tipo de bloqueio pode ser driblado pelos leitores com o uso de redes privadas virtuais (VPN), mas muitos veículos de notícias acabam transferindo seu trabalho para outros sites ou redes sociais. Por conta disso, vários estabelecimentos fecharam as portas depois de serem bloqueados no Egito, cita a CPJ.
Responsabilidade
Weber avaliou qual seria a responsabilidade de uma empresa ao fornecer um middlebox a um cliente que fará uso do dispositivo para censurar notícias de acordo com a lei local. “Existem práticas recomendadas para envolver clientes no exterior e fazer avaliações de risco. Não vi muitas evidências de que a Huawei faça isso”, ponderou o estudioso.
Para ele, se você é um fabricante que vende para autoridades policiais ou governamentais, é necessário, antes de fechar o negócio, avaliar seu histórico de direitos humanos. “É muito fácil dizer: ‘Não sabemos como isso será usado’. Se fomos capazes de encontrar um uso questionável da tecnologia, uma empresa multimilionária ou multibilionária também deveria conseguir”.
Por que isso importa?
A Huawei tem enfrentado uma crescente desconfiança na construção de redes 5G em todo o mundo, com a implantação rejeitada em vários países. Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e Reino Unido já baniram a infraestrutura da fabricante em seu território por medo de que a China pudesse usá-la para espionagem.
No 5G, que tornou-se ferramenta de pressão geopolítica, os riscos de segurança são mais elevados. Isso porque a nova tecnologia incorpora softwares responsáveis por um processamento dos dados pessoais dos clientes e outras informações confidenciais.
A decisão de utilizar ou não a Huawei nas redes móveis põe a Europa no fogo cruzado da intensa pressão dos Estados Unidos para banir o grupo. Washington alega potencial de vazamento de dados e outras brechas de segurança em benefício do governo chinês.