Vetada pelo Itamaraty, venda de blindados a Kiev geraria empregos e aqueceria indústria de defesa no Brasil

Brasil receberia R$ 3,5 bilhões por 450 veículos Guarani que seriam usados como ambulâncias na guerra em curso na Europa

O Brasil recebeu em maio deste ano um pedido da Ucrânia por até 450 veículos blindados Guarani modelo ambulância, que segundo Kiev seriam usados em operações humanitárias, como resgatar civis e soldados feridos, na guerra contra a Rússia. O negócio, no entanto, foi vetado pelo Departamento de Assuntos Estratégicos, de Defesa e de Desarmamento do Ministério das Relações Exteriores. Deputados da oposição questionaram o veto e enviaram dois requerimentos de informação ao Itamaraty para entender o que o motivou, destacando as “claras vantagens comerciais do negócio.” A posição dos deputados é respaldada por especialistas em Defesa, que destacam sobretudo a geração de empregos e o aquecimento da indústria em geral como principais benefícios da venda.

“A indústria de Defesa precisa de pedidos”, disse À Referência Eduardo Marson Ferreira, consultor no setor de Defesae aeroespacial e membro efetivo do Grupo de Análise de Estratégia Internacional em Defesa, Segurança e Inteligência (DSI), um think tank da Escola de Segurança Multidimensional da USP (Universidade de São Paulo). “Os investimentos são muito grandes”, justificou.

Segundo ele, a mão de obra no setor é altamente especializada, e a gestão do conhecimento é um desafio. Em momentos de crise, como ocorre na economia em geral, os cortes de pessoal são inevitáveis. “Quando você tem que fazer grandes demissões, você perde conhecimento”, afirmou, explicando que negócios como esse ajudam a evitar o êxodo de especialistas. “Não é só o engenheiro. O mecânico de alta tecnologia não se acha na esquina.”

O veiculo blindado Guarani, das forças armadas brasileiras (Foto: Tomasgera/WikiCommons)

Um episódio que ilustra o problema do êxodo de conhecimento ocorreu em março deste ano, quando uma ação civil pública foi movida contra a norte-americana Boeing por contratar um número excessivo de engenheiros brasileiros da Embraer. “O Brasil tem uma pujante e notória indústria aeronáutica”, explica Marson Ferreira.

A Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) e a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB) classificaram a atitude da companhia dos EUA como “ameaça à soberania nacional”, destacando o fato de que muitos dos profissionais têm conhecimento de projetos delicados, como o dos caças suecos F-39 Gripen, que desde maio deste ano são produzidos no Brasil através de uma parceria entre a Embraer e a SAAB, da Suécia.

Por ocasião do lançamento da linha de produção dos caças em Gavião Peixoto, cidade do interior de São Paulo, o Ministro da Defesa José Mucio destacou a importância de parcerias como esta.

“Muito mais do que uma evolução nos meios de defesa aérea, o advento do caça Gripen permite ao país um aumento significativo de sua capacidade operativa. Essa parceria proporcionou ainda a transferência de tecnologia de ponta, permitindo, hoje, uma linha de produção da aeronave em solo nacional”, disse Múcio, segundo o site da FAB (Força Aérea Brasileia).

É justamente esse um dos argumentos a favor da venda dos blindados Guarani a Kiev. De acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, o negócio movimentaria aproximadamente R$ 3,5 bilhões. Em royalties, o exército brasileiro receberia entre 2% e 5%, valor que poderia alcançar R$ 180 milhões e que seria reinvestido no desenvolvimento de novos modelos do veículo.

“O Estado da indústria de Defesaé tal que qualquer pedido é relevante”, afirmou Marson Ferreira, destacando que não só a indústria bélica seria beneficiada pelo negócio. “Na pior das hipóteses, nós estamos garantindo emprego na cadeia produtiva, desde o fornecedor do aço até o fornecedor do motor e do sistema de freio.”

Roberto Alves Gallo, presidente da ABIMDE, fez análise semelhante em entrevista à agência russa Sputnik, cujo conteúdo foi reproduzido pelo jornal Hora do Povo em dezembro do ano passado. Segundo ele, a indústria de Defesa brasileira está fragilizada porque carece de uma política de compras regulares.

Considerando os R$ 3,5 bilhões e o orçamento de Defesa do Brasil, a relevância financeira da venda dos blindados fica clara. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês), no ano passado o país gastou US$ 20,2 bilhões (R$ 99,7 bilhões) em defesa, 17º no ranking global. Ou seja, um único pedido representaria 3,5% do orçamento brasileiro.

Função humanitária

A solicitação de autorização para exportação dos veículos, enviada ao Ministério da Defesa pelo Gabinete de Adinância da Defesa da Embaixada da Ucrânia, foi reproduzido pelo site Militarnyi. O documento inclui uma foto de como ficaria o Guarani com as cores da Ucrânia e as sinalizações de se tratar de um veículo de evacuação.

Blindado brasileiro Guarani modelo ambulância com as cores da Ucrânia (Foto: reprodução/mil.in.ua)

“Não é um produto nem de ataque nem de dissuasão. É um produto de ajuda humanitária”, reforça Marson Ferreira. “As pessoas desconhecem que no campo de batalhas você precisa de ambulâncias desse tipo, blindadas. As pessoas acham que ‘ah, se for pra ser ambulância, exportaria ambulância de hospital’. Isso é uma bobagem monstruosa.”

A afirmação é compatível com o que consta no documento enviado por Kiev. “Os veículos seriam utilizados em tarefas principais de evacuação de civis em zona conflagrada, onde se necessita proteção blindada, assim como para transporte de feridos das zonas de combate até os hospitais de campanha” diz o documento enviado pelo governo ucraniano ao brasileiro. “Os veículos não seriam utilizados diretamente em tarefas de combate, apenas para questões humanitárias.”

Pedidos de explicação

O veto ao negócio gerou dois requerimentos de informação ao Ministério das Relações Exteriores. O primeiro foi apresentado no dia 13 de julho por três deputados do Novo, Marcel van Hattem, Gilson Marques e Adriana Ventura. O segundo, com data de 9 de agosto, partiu da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, presidida pelo deputado Paulo Alexandre Barbosa (PSDB).

No primeiro requerimento, os deputados informam que o Ministério das Relações Exteriores “teria orientado o presidente da república a vetar a operação, sob a alegação de que comprometeria a posição de neutralidade do Brasil no conflito” entre Ucrânia e Rússia.

Os deputados, no entanto, observam que “causa estranhamento a posição da diplomacia brasileira nesse caso, que por muitos anos adotou visão pragmática nas relações internacionais, aproveitando-se de posição real de neutralidade para realização de negócios que beneficiam estrategicamente o Brasil.”

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