ARTIGO: Represa da Renascença reacende tensões entre Egito, Sudão e Etiópia

Pesquisador debate os problemas geopolíticos de disputa por barragem às margens do Nilo, que abastece os três países

Este conteúdo foi publicado originalmente pelo Gedes (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional) da Unesp (Universidade Estadual Paulista)

por Lucas Oliveira Ramos, doutorando e pesquisador do Gedes

Muitas das tensões geopolíticas no Chifre da África são decorrentes da luta colonial e histórica dessa sub-região que envolveu França, Itália, Reino Unido e Etiópia (nação que resistiu à jornada colonial europeia dos séculos passados). Hoje, a herança dessa luta pode ser lida através das disputas territoriais, as indefinições acerca da posse e do uso dos recursos hídricos advindos do Rio Nilo e a crescente onda de migração e refúgio, corolário dos conflitos civis e interestatais que esses países sofreram em seu passado recente.

Recentemente, atritos nas relações de Etiópia, Sudão e Egito voltaram ao centro das atenções devido ao acirramento das negociações da construção da barragem no Rio Nilo, projeto e sonho antigos dos governos etíopes. Dadas as instabilidades internas e rivalidades entre esses três países, a possibilidade da militarização dessa região é iminente e chama a atenção.

Uma breve retomada histórica das relações tríplices

No início de março de 2021, Sudão e Egito assinaram um pacto militar que visava a melhoria das relações entre os dois Estados através de um encaixe coeso no que tange às suas principais políticas de segurança nacional. Este acordo surge no contexto de negociações das barragens momentaneamente interrompidas da Represa do Renascimento (Grand Ethiopian Renaissance Dam — GERD) e a consequente disputa fronteiriça com Sudão e Etiópia. Historicamente, os três países disputam a posse e usufruto dos recursos hídricos do Nilo. Importante ressaltar que a Etiópia é um país montante (mais próximo da nascente) em relação ao Nilo e possui cerca de 85% da extensão do rio, ao passo que Sudão e Egito estão à jusante (mais próximos da foz).

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Homens trabalham na construção da barragem na Etiópia, em imagem de 2014 (Foto: Wikimedia Commons)

Em 2011, Meles Zenawi, à época primeiro-ministro etíope, lançou os fundamentos da GERD. Desde então, reacenderam-se os problemas de cooperação fronteiriça sobre o domínio das águas daquela região, o que contribuiu para o pacto firmado em 2021 pelo Egito e o Sudão. Muito embora ambos os países afirmem que o motivo do pacto tem a ver com as semelhanças em relação aos desafios de segurança nacional e às grandes possibilidades de spillover das suas situações internas, é importante que esse pacto também seja interpretado dentro do contexto geopolítico ampliado.

A assinatura do acordo aconteceu após a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros sudanês, Mariam Al Mahdi, ao presidente egípcio Abdel Fattah El Sisi. Os chefes de pessoal das forças armadas de ambos os países, General Mohammed Farid Hegazy (Egito) e General Mohamed Othman Al Hussein (Sudão), assinaram o pacto na capital do Sudão, Cartum.

Em declaração, ambas as partes expressaram a sua gratidão pelo aumento das relações de segurança e cooperação entre os dois países. O General Hegazy declarou que “o Egito está pronto para atender o pedido do Sudão em todos os domínios, incluindo armamentos, formação conjunta, apoio técnico e fronteiras conjuntas de segurança”, aludindo à potencial ameaça iminente que paira sobre ambos os países. Esta declaração serve como uma garantia para os sudaneses, mas um aviso aos potenciais inimigos sobre a disponibilidade de recursos e a prontidão para utilizá-los.

À época em que a declaração foi redigida, a Etiópia ainda não havia respondido ao movimento estratégico de Egito e Sudão. Ainda assim, em março de 2021, o Sudão acusou a Etiópia de estar envolvida em disputas relacionadas com a fronteira. A disputa de um século sobre a região al-Fashqa — onde a região de Amhara, na Etiópia, se encontra com o estado sudanês de Gadarif — foi reacendida recentemente. Os tratados anglo-etíopes de 1902 e 1907 atribuíram a terra ao Sudão, mas os agricultores etíopes utilizaram as terras agrícolas ao longo dos anos. Em 2008, o antigo primeiro-ministro da Etiópia, Meles Zenawi, e o governo do Sudão celebraram um acordo bilateral relativo à disputa fronteiriça da al-Fashqa. A Etiópia reconheceria a área como parte do Sudão e, em troca, os agricultores etíopes seriam autorizados a continuar a lavrar as terras agricultáveis. 

Tanto o Sudão como a Etiópia acusaram-se mutuamente de usurpação. No início de 2021, o Sudão recuperou a zona al-Fashqa e acusou a Etiópia de sobrevoar aviões militares, emboscando soldados sudaneses e matando civis, incluindo cinco mulheres e crianças. A Etiópia alegou que os militares sudaneses tiraram proveito  de sua supervisão e  proteção de  fronteiras para invadir e pilhar propriedades, enquanto abordava o conflito do Tigray.

Cartum, por sua vez, alega que Adis Abeba vendeu armas a grupos rebeldes para permitir a desestabilização do país, um ato que os sudaneses entendem como uma tentativa de distração  das verdadeiras questões que afligem ambas as partes e a região, em geral. Estas acusações surgem na sequência da assinatura do pacto militar entre o Egito e o Sudão em março.

Interesses, segurança e a Represa da Renascença

A GERD tem sido um ponto de inflexão à cooperação na região. Na sequência da decisão unilateral da Etiópia de construir uma barragem de 6.450 megawatts no alto do Nilo Azul, o Sudão e o Egito contestaram a decisão invocando direitos “históricos” ou “coloniais” sobre a via navegável, tal como acordado pelo Tratado Anglo-Egípcio de 1929 e 1959.

Na sua busca por desenvolvimento e autonomia, a Etiópia considera a segurança energética como um fator importante e integral. À jusante, Egito e Sudão citaram o risco potencial para a sua segurança hídrica com implicações para a alimentação, o meio ambiente e a segurança humana, mais amplamente, nos seus territórios. Independentemente das suas preocupações, a Etiópia construiu a barragem e a segunda fase de abastecimento  está atualmente em curso. Esta tem sido a fonte do imbróglio entre os três países.

O Egito e o Sudão apelaram a um “acordo global” para assegurar que os seus interesses não sejam ameaçados após a conclusão da barragem. Em resposta, a Etiópia rejeitou o pedido de outro acordo e está prestes a iniciar a segunda fase da construção da barragem. O Egito e o Sudão responderam assinando o pacto militar para reforçar a inteligência e a partilha de recursos entre os dois Estados à jusante.

Ambiente político interno

A dinâmica política interna instável tanto na Etiópia como no Sudão é outro fator que contribui para a recente instabilidade. Após sua ascensão como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, Abiy Ahmed cultivou alianças com o descontente Partido Democrático Amhara (ADP), ao mesmo tempo em que deixou de lado a Frente de Libertação do Povo Tigre (TPLF), da qual Zenawi (o primeiro-ministro que cedeu a al-Fashqa aos sudaneses) era membro.

No Sudão, o governo de transição, um acordo de partilha do poder civil-militar foi recebido com desentendimentos e desconfianças. O Sudão tem de gerir conflitos no Porto do Sudão e na região de Darfur. Os conflitos internos resultam frequentemente em migração populacional para áreas menos conturbadas ou regiões vizinhas e crises de refugiados — complicando ainda mais o desacordo fronteiriço entre a Etiópia e o Sudão.

O papel dos atores externos

A administração Trump, juntamente com o Banco Mundial, liderou o processo de mediação entre os três países, desde novembro de 2019, até meados dos anos 2020. O fracasso dos esforços internacionais ocasionou a passagem do bastão ao então presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa. Em 2 de março de 2021, os ministros dos negócios estrangeiros egípcio e sudanês apelaram a uma expansão do quadro de mediação para incluir as Nações Unidas, os EUA, e a União Europeia. A Etiópia rejeitou este pedido, citando que tal gesto mina as “soluções africanas para os problemas africanos”, apresentado por Thabo Mbeki e a agenda pan-africana. Além disso, os esforços estabelecidos por Cyril Ramaphosa antes de ser sucedido por Félix Tshisekedi, da República Democrática do Congo, seriam comprometidos.

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Registro da Grande Barragem da Renascença, na Etiópia, em março de 2020 (Foto: Reprodução/Facebook/Grand Ethiopian Renaissance Dam)

Para além das negociações regionais, também é necessário pontuar os alinhamentos internacionais que esses países possuem, uma vez que isso influi diretamente no processo negociador do imbróglio. Embora os EUA tenham uma boa relação com o governo egípcio em termos militares, a Etiópia desenvolveu uma das mais fortes relações econômicas com a China no continente. Embora as relações Egito-EUA sejam sublinhadas por tensões em torno de questões de direitos humanos, os primeiros veem os EUA como um aliado influente, sobremaneira na ONU.

A Etiópia, antecipando as dinâmicas apresentadas, insiste que a UA seja o principal mediador dos processos de negociação. No esquema mais amplo da Agenda 2063 (programa de desenvolvimento econômico africano, lançado em 2015), a UA tem um papel mais importante a desempenhar na obtenção de um consenso sobre a GERD, no entanto, o ônus recai sobre o Egito para reavaliar a premissa sobre a qual reivindica “direitos adquiridos” aos recursos hídricos da Bacia do Nilo.

Por fim, é importante destacar a crescente presença do estado de Israel no Chifre. À medida em que os laços etíopes e israelenses se reforçam, o Egito tem se preocupado com as implicações dessa relação nas negociações das barragens. Dado o histórico de inimizade entre Egito e Israel, é importante mencionar, entretanto, que essas relações evoluíram positivamente, especialmente através das linhas de segurança nacional. Com ambos os países preocupados com a crescente influência do Irã na região árabe e o aumento da insurgência islâmica na Península do Sinai, no Egito, e no território palestino da Faixa de Gaza, a ameaça comum às suas agendas de segurança nacional resultou na cooperação e na coordenação da estratégia entre ambos. 

Por que essa questão é importante para a União Africana?

Subjacente ao estabelecimento e transição da Organização de Unidade Africana (OUA) para a União Africana esteve a busca de um desenvolvimento orientado para a África que seja anti-colonização, anti-imperialista e anti-imposição externa — uma agenda de desenvolvimento doméstico que vise à plena exploração do potencial da África como ator estratégico e global, englobando a fundação da instituição. Ao traçar a sua trajetória de desenvolvimento, vários tratados e agendas —  tais como o Plano de Ação de Lagos, o Tratado de Abuja, a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (Nepad) e a Agenda 2063 — foram ratificados por todos os países do continente africano.

Embora a vontade política e o empenho sejam fundamentais para a implementação bem-sucedida da agenda do desenvolvimento, a paz, a segurança e a estabilidade são de igual importância. Assim, é necessária uma ação da UA para escapar ao conflito interestatal na região, ao mesmo tempo que exorta diplomática e pacificamente todas as partes no sentido de uma (re)solução duradoura. Contudo, no caso de uma guerra em larga escala, é importante examinar os potenciais resultados.

Mais do que nunca, o presidente da UA precisa demonstrar liderança no Chifre de África. Uma equipe de mediadores africanos (com a participação periférica e apoio de parceiros internacionais estratégicos como os EUA, China, Rússia, e Nações Unidas) é imperativo e urgente para resistir à tempestade iminente na sub-região.

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