Mensagens dos Estados Unidos direcionadas aos russos irritam o Kremlin

Artigo revela que Washington passou a usar vídeos de propaganda para mostrar aos russos as mentiras de Putin e o real custo da guerra

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Center for European Policy Analysis (CEPA)

Por Thomas Kent*

É uma das curiosidades da guerra de informação que por muitos anos os EUA não responderam da mesma forma à propaganda russa dirigida aos cidadãos americanos. Esta foi em grande parte uma linha vermelha criada pelos próprios Estados Unidos, refletindo preocupações de que, ao se dirigir diretamente ao povo russo, provocaria desnecessariamente Vladimir Putin. Ou que tais campanhas simplesmente não funcionariam.

As guerras mudam as coisas.

Nos últimos meses, o Departamento de Estado produziu um fluxo de mensagens de vídeo contundentes destinadas aos cidadãos russos. Alguns vídeos justapõem declarações de Putin com evidências de que ele está mentindo. Alguns terminam com slogans como “A verdade sempre vence” e “Proteja seu futuro. Acabe com a matança. Pare a Guerra”. Um simplesmente contrasta Putin fazendo uma declaração (de que as sanções estão falhando) com seu próprio chefe do banco central dizendo o contrário.

Pelo menos dois vídeos usam o que parecem ser conversas telefônicas interceptadas. Em um deles, um soldado russo descreve os corpos de soldados russos empilhados em um depósito de lixo ucraniano. Em outro, as experiências de deserções e baixas de um soldado na linha de frente são contrastadas com as negações de Putin. (Assista a um dos vídeos abaixo, legendado em inglês)

Respondendo a um vídeo, Dmitry Medvedev, vice-chefe do Conselho de Segurança de Putin, declarou que “os filhos da p… que entregam tal absurdo são os verdadeiros herdeiros do ministro da Propaganda do Reich, Joseph Goebbels”. Um deputado sênior da Duma disse que o vídeo foi mascarado em “roupa de cordeiro” e equivalia a incitar a rebelião.

Em 30 de janeiro e 7 de fevereiro, o Ministério das Relações Exteriores exigiu que a embaixada dos Estados Unidos “observasse rigorosamente” a lei russa. Ameaçou usar todos os recursos disponíveis para “neutralizar” a “raivosa propaganda antirrussa” da embaixada, uma referência à distribuição dos vídeos.

Os vídeos também foram publicados nas plataformas do Departamento de Estado e no YouTube, que ainda não é proibido na Rússia.

O atual regime russo, como seus antecessores soviéticos, há muito tempo acusa as nações ocidentais de usar táticas psicológicas para minar a unidade russa – acusações que podem revelar mais sobre os temores do governo do que sobre a política real dos EUA e de seus aliados.

Normalmente, a ira de Moscou é dirigida a agências de notícias como a BBC e a Radio Free Europe/Radio Liberty. Embora o Kremlin dificilmente goste das histórias que esses veículos cobrem, seu formato é basicamente o de organizações de notícias. Sua independência editorial significa que os governos não podem ditar seu conteúdo.

Os vídeos do Departamento de Estado são diferentes. Eles são produtos oficiais de marca do governo.

A mensagem dos EUA que irritou Medvedev, emitida em 4 de janeiro e durando menos de um minuto, é intitulada “Ao povo da Rússia”. O vídeo começa com imagens de antigas parcerias EUA-Rússia na Segunda Guerra Mundial, na cultura e no espaço. Em seguida, muda para cenas de devastação na Ucrânia com a legenda: “Não acreditamos que o que está acontecendo seja digno de você”. O vídeo termina com os cânticos dos manifestantes antiguerra russos e o texto “Estamos com todos vocês lutando por um futuro mais pacífico”.

Governo dos EUA dialoga com os russos para expor as mentiras de Putin (Foto: Pxhere/Divulgação)

As postagens contendo o vídeo acumularam mais de um milhão de visualizações nos canais Telegram e Twitter da embaixada, embora não esteja claro quantas dessas visualizações vieram de dentro da Rússia. Os números poderiam ter sido aumentados pela curiosidade sobre o que os altos funcionários estavam reclamando tanto.

Analistas da opinião pública russa há muito discordam sobre quais mensagens sobre a guerra podem repercutir melhor entre os cidadãos russos. Os vídeos dos EUA representam uma mistura de abordagens, talvez destinadas a testar várias alternativas.

Alguns acreditam que os russos que aderiram à propaganda do Kremlin devem ser abordados com gentileza, como pessoas atraídas para uma seita. Para aqueles com essa perspectiva, lembranças da antiga amizade EUA-Rússia podem ser mais eficazes do que ataques diretos a Putin.

Outros russos se importam pouco com a guerra, mas podem responder a mensagens sobre os danos que ela está causando à economia russa. Imagens de morte e destruição na Ucrânia podem atrair simpatia, mas são confrontadas por contra-alegações na propaganda do Kremlin de que a Rússia está em uma luta de vida ou morte contra um exército combinado Ucrânia-Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Os vídeos fornecem informações sobre a guerra aos russos, que muitas vezes sabem muito pouco sobre ela. (Quase metade não sabe que Putin foi indiciado por crimes de guerra).

Dado o sufocante aparato de segurança de Putin, é improvável que os vídeos tenham muito efeito por si mesmos. Mas tais esforços – combinados com um fluxo constante de más notícias sobre a guerra chegando aos russos de outras fontes – podem afetar o pensamento dos cidadãos ao longo do tempo.

Acredita-se que o governo da Rússia monitora de perto as atitudes de seus cidadãos. Se eles se tornarem menos pacientes com uma guerra cada vez mais cara ou continuarem a guardar memórias de melhores relações com os EUA, tais sentimentos podem eventualmente pesar nos cálculos dentro do Kremlin – sob Putin ou um sucessor.

Entretanto, para manter uma audiência duradoura para as mensagens dos Estados Unidos, muito depende da força promocional por trás delas. Ganhar atenção nas redes sociais requer um investimento em marketing e a capacidade de direcionar determinados vídeos para os segmentos populacionais onde serão mais eficazes. Se os vídeos tiverem um efeito contínuo, os EUA devem garantir que sejam vistos.

*consultor em assuntos russos e na guerra da informação e leciona na Universidade de Columbia. É ex-presidente da Radio Free Europe/Radio Liberty

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