A propaganda chinesa invade o mundo

Artigo analisa o projeto de Beijing de espalhar jornalistas e influenciadores em todo o mundo a fim de produzirem uma imagem favorável do país

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no jornal francês Le Figaro

Por Sébastien Falletti

A Operação “Bruxelas” ganha forma nos bolsos secretos das “Calças” de Beijing. É assim que os habitantes da capital chinesa se referem à ousada obra de vidro e aço do prédio da televisão estatal CCTV, projetado por Rem Koolhaas e que abe suas pernas em um bairro comercial da metrópole da segunda potência mundial. O edifício futurista, inaugurado em 2008, simboliza os investimentos maciços do regime comunista para manter seu rígido controle sobre a informação na China, e que agora se estende além da Grande Muralha, por injunção do presidente Xi Jinping.

Nos últimos meses, este formigueiro tem estado ativo no recrutamento de jornalistas experientes para estabelecer um novo ponto de apoio da propaganda em Bruxelas, no coração da Europa. Beijing vai abrir um imponente escritório do China Media Group (CMG), sua nova força de ataque audiovisual, batizada de “Voz da China”, para complementar o grande contingente de jornalistas da imprensa oficial já instalados na capital da União Europeia (UE). Este novo site fortalecerá um sistema de oito escritórios, notadamente em Nairóbi, Londres, São Paulo e Moscou, como parte de uma grande ofensiva do CMG, que abriu 264 novas vagas para recrutamento em dezembro, incluindo 82 especificamente dedicadas à “propaganda internacional”, de acordo com o anúncio publicado em dezembro. Os candidatos atendem a critérios muito específicos, a serviço da glória do gigante renascido. “Precisamos de jornalistas experientes e muito sociais, capazes de criar vínculos com ocidentais de todas as esferas da vida, para levá-los a elogiar a China“, explica uma fonte interna.

Presidente da China, Xi Jinping (Foto: Cia Pak/UN Photo)

Fundado em 2018, o China Media Group reúne os meios de projeção internacional da indústria audiovisual chinesa, incluindo o canal CGTN, apelidado de “CNN chinesa”, e a Radio Chine Internationale, sob a autoridade direta do escritório de propaganda do Partido Comunista Chinês (PCC). Campeão de um renascimento nacionalista desinibido, Xi fez da comunicação internacional uma prioridade, com o objetivo de influenciar a “conversação mundial”, dominada por uma leitura considerada demasiado ocidental, em Beijing. “Precisamos construir um meio de propaganda externo emblemático com forte influência internacional. Devemos criar novos conceitos e expressões, para podermos contar bem a história chinesa », decretou o presidente logo que assumiu o poder em 2013. Um eufemismo que significa obediência absoluta à formação marxista-leninista, em plena dominação ideológica da sociedade. A mídia estatal deve “amar, proteger e alinhar-se estreitamente com o Partido”, martelou este “príncipe vermelho” durante uma visita à CCTV em 2016.

Trabalho minando

Ao se projetar para um terceiro mandato, o líder mais autoritário desde Mao redobra seus esforços, em um contexto de cabo-de-guerra agora assumido com os Estados Unidos, com o olhar voltado para a história, com a ambição de afirmar a reencontrada preeminência da “Grande China” em 2049, ano do centenário do regime. “Vimos uma presença online internacional muito mais forte desde 2019, em resposta aos protestos em Hong Kong. O objetivo é estender a batalha da propaganda no exterior, a fim de influenciar os debates internacionais de longo prazo em favor da China”, disse Mareike Ohlberg, do German Marshall Fund. Esse voluntarismo é baseado em maciços recursos financeiros destinados à propaganda internacional, calculados em US$ 10 bilhões por ano por David Shambaugh, professor da Universidade George Washington, entrevistado pelo Financial Times.

Trabalho de sabotagem foi realizado em todas as frentes, desde os meios de comunicação às redes sociais, passando pela publicidade, e que “tem tido algum sucesso”, segundo Ohlberg. Em meio a uma pandemia, a mídia estatal trabalha para promover a entrega de máscaras e vacinas, com meios inéditos. A agência oficial de notícias Xinhua tem 230 escritórios em todo o mundo, cerca de 40% a mais do que em 2017, e transmite seus artigos censurados em onze idiomas, omitindo informações consideradas perturbadoras. Assim, a agência nunca mencionou o Oscar ganho pela cineasta Chloé Zhao, devido um antigo depoimento dela considerado crítico pelos censores.

O sucesso do TikTok

Ironia mordaz, as plataformas americanas Facebook e Twitter, proibidas na China pela censura, são uma ferramenta fundamental para divulgar a boa palavra do PCC, por meio de perfis da mídia oficial, de diplomatas ou de “amigos” estrangeiros da China. Uma grande vulnerabilidade para Beijing, que fica à mercê da proibição dessas plataformas, como ocorreu no governo de Donald Trump. Mas, o sucesso estonteante do TikTok com adolescentes de todo o mundo sinaliza o advento de uma primeira plataforma chinesa de dimensão global.

Para conter as acusações internacionais de genocídio em Xinjiang, Beijing “recruta” jornalistas “ocidentais” e youtubers, como Laurène Beaumond, pseudônimo de uma francesa que trabalhava para o canal CGTN, entrevistada pelo Le Figaro, ou pelos britânicos Jason Lightfoot e Lee Barrett, que não responderam aos nossos pedidos de entrevista. Expatriados que muitas vezes amam o país e que se beneficiam de salários mais substanciais do que seus “colegas” chineses quando trabalham para a mídia estatal, segundo relatos. “Os chineses acreditam que um rosto ‘branco’ terá mais chance de convencer um público ocidental, por não ter conseguido passar a mensagem pelos chineses”, destaca Cho Li Fung, especialista da Universidade de Hong Kong. Um fio que remonta à era revolucionária, quando Mao recebeu de braços abertos o simpatizante americano Edgar Snow, autor de um livro em homenagem ao Partido, obra apresentada como modelo a ser seguido no século XX por jornalistas estrangeiros, segundo o Ministro das Relações Exteriores Wang Yi.

O fortalecimento do soft power continua a ser uma longa marcha incerta, e a marca China ainda é um “tigre de papel”, dado o poder econômico do país, cujo PIB deve superar o dos Estados Unidos até o final da década. Entre as ambições do “príncipe vermelho” e a realidade no terreno, o fosso é cada vez maior, devido aos desafios de divulgação, mas também ao discurso cada vez mais nacionalizado e ideológico de Beijing, que em troca alimenta o espectro de uma “ameaça” chinesa. A imagem da China se deteriorou drasticamente durante a pandemia, de acordo com pesquisas do Pew Research Center em 14 países desenvolvidos, publicadas em outubro. O Reino Unido acaba de revogar a licença de transmissão da CGTN, argumentando que este canal é “controlado pelo PCC, e forçando-a a encontrar uma solução alternativa em Paris.

A tomada ideológica decretada por Xi acentua ainda mais as dificuldades de Beijing em atingir o público estrangeiro, ao transformar a China numa gigantesca bolha de informação, vivendo cada vez mais isolada, impondo quarentena aos viajantes como impõe às ideias. “Sabemos que nossos programas não têm grande audiência. Mas, quando uma postagem no Twitter é retransmitida por centenas de internautas, isso é enorme”, confirma um jornalista, sob condição de anonimato. Beijing sonha exportar suas “novelas”, filmes e artistas, mas seu conteúdo fortemente censurado luta para competir com o K-Pop e os dramas da vizinha Coréia do Sul. “A China e o Ocidente estão vivendo cada vez mais em mundos paralelos”, diz um pesquisador de uma importante instituição universitária de Beijing. Uma lacuna cognitiva repleta de mal-entendidos crescentes à medida que uma nova guerra fria se inicia na Ásia-Pacífico, onde o poder tem precedência sobre o soft power.

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