O governo da China vem censurando as manifestações públicas de pesar pela morte do ex-primeiro-ministro Li Keqiang, ocorrida na última sexta-feira (27). Oficialmente, Beijing alega que ele foi vítima de problemas cardíacos. A repressão, que visa evitar que se repitam os protestos que levaram ao Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, foi ampliada sobretudo na internet e nas universidades do país, segundo informa a rede Radio Free Asia (RFA).
Nas primeiras horas após o anúncio da morte de Li, mensagens emotivas começaram a surgir nas redes sociais chinesas: “o primeiro-ministro do povo”, “descanse em paz” e “um bom primeiro-ministro cuja carreira política não deveria ter terminado da forma como terminou.”
Pouco depois, entretanto, tais manifestações desapareceram das buscas feitas pelo nome da autoridade. Passaram a ser exibidos apenas o obituário oficial do governo e mensagens padronizadas, como “desejo-lhe uma boa jornada”, expressão que na China equivale a “descanse em paz”.
Estudantes vigiados
Na rede social X, antigo Twitter, vários cidadãos passaram a relatar que algumas universidades chinesas, entre elas as de Xangai, haviam proibido seus alunos de realizarem manifestações públicas de pesar pela morte de Li. Mesmo o depósito de flores em frente a monumentos e edifícios foi proibido.
Na Universidade de Hainan, o sindicato dos alunos realizou uma reunião emergencial na qual foram vetados vídeos e fotos, para evitar que os envolvidos viessem a ser identificados pelo governo. No encontro, ficou decidido que não seria realizado qualquer evento, como “comícios, manifestações, homenagens florais e outras atividades memoriais.”
Em diversas outras universidades, os estudantes receberam mensagens com recomendações de que as postagens na internet fossem suspensas, sugerindo que o momento poderia levar alguns a se deixarem levar pelas emoções, publicando conteúdo ofensivo ao regime.
Na Universidade Jiaotong, de Xangai, os funcionários foram aconselhados a circularem entre os alunos como fiscais de comportamento. “Prestem atenção aos seus pensamentos e opiniões”, dizia comunicado da direção do estabelecimento. “Prestem atenção aos movimentos dos estudantes nos próximos dias e a quaisquer reuniões ou atividades de luto no campus.”
China em ebulição
O ambiente atual na China leva o governo a enxergar possíveis semelhanças com 1989. A população cada vez mais demonstra insatisfação com determinadas políticas do presidente Xi Jinping, e Beijing tem agido com rigor para silenciar os insatisfeitos. No ano passado, por exemplo, muitos cidadãos foram às ruas protestar contra a rigidez da política “Zero Covid”, algo que parecia inviável no repressor regime.
A morte de Li, portanto, poderia ser o estopim para um levante popular contra o Partido Comunista Chinês (PCC). Exatamente como ocorreu em 1989, quando milhares de estudantes e trabalhadores inicialmente se reuniram para lamentar a morte do secretário-geral Hu Yaobang. Porém, a marcha pacífica logo se transformou em um movimento por maior transparência, reformas e democracia.
O exército foi mobilizado e dispersou a multidão com armas de fogo e tanques de guerra, considerando a manifestação popular uma ameaça ao poder do partido. Números oficiais de mortos e feridos nunca foram divulgados, vez que o governo chinês tornou o assunto proibido no país. Porém, dados levantados pelo governo britânico e reproduzidos pela rede BBC apontam cerca de dez mil vítimas fatais no que passou a ser conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial.
Desde então, o PCC colocou uma pedra sobre o assunto, e qualquer tentativa de relembrar o ocorrido é reprimida com violência. A censura atinge inclusive Hong Kong, hoje território chinês, onde a vigília anual pelas vítimas do Massacre foi proibida e levou à prisão de ativistas.
Agora, o PCC age para reprimir a comoção antes que ela se se vire contra o governo. “Muitas pessoas estão fazendo o possível para expressar suas condolências ou discutir sobre Li Keqiang em vários espaços online”, disse Si Ling, um analista especializado em política chinesa. “É como um suspiro [coletivo] sobre as dificuldades atuais na China de hoje e sobre o pessimismo em relação ao futuro do país.”
Segundo Si, “a morte de Li Keqiang tornou-se um símbolo e uma desculpa para as pessoas expressarem séria insatisfação com o status quo”, disse ele, que também vê um paralelo com 1989. “Mesmo que Li Keqiang não tenha o pedigree político ou o status histórico de Hu Yaobang, o governo chinês prefere matar mil por engano do que deixar um sair em liberdade.”