Em Hong Kong, aniversário do Massacre da Praça da Paz Celestial tem prisões e festa pró-China

Victoria Park, tradicional palco de uma vigília para lembrar as vítimas, recebe neste ano um evento que celebra a entrega de Hong Kong a Beijing

Tradicionalmente, o dia 4 de junho em Hong Kong é de luto e pesar pelas vítimas do Massacre da Praça da Paz Celestial, episódio em que as forças do Partido Comunista Chinês (PCC) reprimiram violentamente manifestantes pró-democracia e causaram milhares de mortes em 1989. No entanto, a tradicional vigília à luz de velas está proibida, inclusive com casos de participantes julgados e condenado com base na lei de segurança nacional. Neste ano, algumas poucas pessoas desafiaram a repressão, com relatos de mais de 30 detidos. Mas no Victoria Park, palco da tradicional vigília, o clima foi diferente, com uma festa popular pró-China celebrando a entrega da cidade ao controle de Beijing.

De acordo com o jornal The Washington Post, o Victoria Park recebe desde domingo (4), por três dias, uma festa com comida, apresentações musicais e barracas vendendo itens alusivos à China. A data foi escolhida a dedo pelos organizadores, parte do enorme processo coordenado por Beijing para tentar apagar a memória do Massacre. Algo que fica evidente pela falta de sincronia dos festejos, vez que o retorno de Hong Kong ao domínio chinês é celebrado somente em 1º de julho.

No 4 de junho, quando tradicionalmente ocorria a vigília, as autoridades honconguesas repetiram o que ocorreu no ano passado e destacaram dezenas de policiais para patrulhar a região do Victoria Park, incumbidos da missão de evitar aglomerações.

Cidadãos locais que passaram pela festa pró-China expressaram medo com a atuação da polícia e desgosto pela realização do evento em um data que deveria ser lembrada com tristeza. “Hong Kong mudou muito, mas não há nada que possamos fazer a respeito”, disse Leung, de 28 anos, que revelou apenas o sobrenome por medo de represálias.

Vigília em Hong Kong, em 2009, lembra o Massacre da Praça da Paz Celestial (Foto: Wikimedia Commons)

De acordo com Louisa Lim, professora da Universidade de Melbourne e especialista em Hong Kong, a situação no território semiautônomo é propositalmente indefinida no que tange à proibição de manifestações em memória das vítimas. Ela explica que na China continental “está bem claro quais serão as consequências”, enquanto em Hong Kong “a linha vermelha é deliberadamente ambígua, e isso dá às autoridades espaço de manobra.”

Apesar da repressão crescente, a rede Voice of America (VOA) relatou que 32 pessoas foram presas em Hong Kong na véspera e no próprio dia 4 de junho. Entre elas, oito artistas e ativistas detidos no sábado (3), uma mulher presa no dia seguinte acusada de obstruir a ação da polícia e outras 23 pessoas detidas também no domingo por “violar a paz pública”.

As forças de segurança também foram mobilizadas em Beijing, com centenas de policiais deslocados para impedir eventuais atos na Praça da Paz Celestial, Tiananmen para os chineses. Pessoas que circulavam pela região eram obrigadas a mostrar documentos, algo que não afugentou a multidão de turistas que visitaram o palco do Massacre durante o final de semana.

Condenação internacional

Por conta da data, ONGs de defesa dos direitos humanos criticaram a tentativa do governo chinês de apagar as lembranças do Massacre.

“O governo chinês continua fugindo da responsabilidade pelo Massacre da Praça da Paz Celestial, que já dura décadas e encorajou a detenção arbitrária de milhões, a severa censura e vigilância e os esforços para minar os direitos internacionalmente”, disse Yaqiu Wang, pesquisador sênior da Human Rights Watch (HRW) na China. “Ainda assim, as pessoas na China e no mundo continuam a arriscar sua segurança e liberdade ao falar e exigir seus direitos.”

A HRW denunciou o governo chinês por reprimir inclusive a comunicação entre membros do grupo Mães de Tiananmen, que reúne parentes de vítimas da violência do governo em 1989. Mesmo assim, o grupo divulgou um comunicado pedindo “verdade, compensação e responsabilidade” sobre o Massacre.

Sobraram críticas até aos governos ocidentais, sob a alegação de que as sanções impostas por EUA e União Europeia (UE) em virtude do Massacre perderam força com o passar dos anos. “A falta de uma resposta sustentada, coordenada e internacional ao massacre e à subsequente repressão é um fator nas violações cada vez mais descaradas dos direitos humanos por Beijing”, disse a HRW.

Já a Anistia Internacional se manifestou através do vice-diretor regional interino de pesquisa Montse Ferrer. “O fato de os habitantes de Hong Kong continuarem a marcar a repressão da Praça da Paz Celestial, apesar dos riscos crescentes, revela a futilidade das tentativas das autoridades de impor silêncio e obediência”, disse ele.

Ferrer acrescentou: “A campanha vergonhosa do governo de Hong Kong para impedir que as pessoas comemorem este aniversário reflete a censura do governo central chinês e é um insulto aos mortos na repressão da Praça da Paz Celestial.”

Pedra no assunto

Até antes da pandemia, Hong Kong e Macau eram os únicos territórios chineses onde era legalmente possível realizar atos para relembrar o Massacre. Nessas regiões, a política de “um país, dois sistemas” foi usada para balizar a devolução à China desses territórios, ex-colônias do Reino Unido e de Portugal.

Em Hong Kong, no entanto, o grupo da sociedade civil que organizou a vigília foi dissolvido, e alguns de seus líderes hoje enfrentam acusações criminais desde que Beijing pôs em vigor a lei de segurança nacional, em junho de 2020. Entre eles, ativistas proeminentes como Jimmy Sham e Figo Chan. Temendo a perseguição, mais de 30 grupos da sociedade civil foram desfeitos.

Após atrair dezenas de milhares de participantes, as vigílias anuais foram interrompidas em 2019, no 30º aniversário da revolta estudantil em Beijing, devido ao avanço do coronavírus. Depois disso, o governo não autorizou a retomada desses eventos.

O Massacre

Em 4 de junho de 1989, centenas de milhares de estudantes e trabalhadores haviam se reunido para lamentar a morte do secretário-geral do PCC, Hu Yaobang. Porém, a marcha pacífica logo se transformou em um movimento por maior transparência, reformas e democracia na China.

O exército foi mobilizado e dispersou a multidão com armas de fogo e tanques de guerra, considerando a manifestação popular uma ameaça ao poder do PCC. Números oficiais de mortos e feridos nunca foram divulgados, vez que o governo chinês tornou o assunto proibido no país. Porém, dados levantados pelo governo britânico e reproduzidos pela BBC apontam cerca de dez mil vítimas fatais. 

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