Desde o golpe em Mianmar, 156 civis foram condenados à morte pela junta militar

Governo ilegítimo usa execuções judiciais abusivas como uma tática para gerar medo e intimidar as forças de oposição

Desde que assumiu o poder em um golpe de Estado em fevereiro de 2021, a junta militar de Mianmar condenou pelo menos 156 pessoas à morte, incluindo quatro adolescentes e muitos jovens na faixa dos 20 anos, segundo informou a rede Radio Free Asia (RFA).

O levantamento foi feito pela Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos da Tailândia (Burma), um grupo de monitoramento da repressão no país. De acordo com o relatório, a junta tem aumentado o número de condenações a ativistas políticos como forma de intimidar os oponentes do governo. Pelo menos 42 dessas condenações foram realizadas em julgamentos à revelia.

De acordo com um funcionário da Burma, que preferiu manter o anonimato por motivos de segurança, o número real de pessoas condenadas à morte pela junta militar pode ser significativamente maior. Ele reforçou a ideia de que a junta utiliza intencionalmente sentenças de morte como uma tática para injetar medo na população. No entanto, observa que o povo envolvido na revolução da primavera continua “determinado a enfrentar a junta”, não importando o quão assustadores eles tentem ser.

Protesto em Mianmar contra o golpe militar de 14 de fevereiro de 2021 (Foto: WikiCommons)

Na lista de pessoas condenadas está Kaung Set Paing, um membro da Federação de Sindicatos de Estudantes da Birmânia, com cerca de 20 anos de idade e preso desde dezembro de 2022. Em 25 de abril, ele foi acusado de incitação e terrorismo, resultando em uma sentença de morte e prisão perpétua.

Yatu, uma assim identificada amiga de Paing, expressou profunda tristeza ao descobrir que ele foi submetido a um mês de tortura durante o interrogatório antes de receber sua sentença. Ela destacou que um jovem de 20 anos como ele deveria estar “desfrutando de seus estudos”, caso não tivesse ocorrido o golpe militar.

“No entanto, agora ele se encontra em uma situação desesperadora na prisão”, disse Yatu, que diz ter preocupações constantes com o amigo, uma vez que ele foi “condenado à morte e pode ser executado a qualquer momento”.

Em julho, a junta militar de Mianmar realizou as primeiras execuções judiciais no país em mais de 30 anos, vitimando quatro ativistas proeminentes. Essa ação representa um marco alarmante, vez que demonstra a intensificação da repressão por parte do regime.

Morte nas prisões

Nay Phone Latt, porta-voz do autodenominado Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), que estabeleceu um regime paralelo para enfrentar os militares no poder desde o golpe, fez sérias acusações contra a junta militar, referindo-se às sentenças outros como “assassinatos na prisão”.

Ele afirmou que a junta militar está recorrendo a “várias formas de assassinato para manter seu poder”, tanto dentro quanto fora das prisões. Segundo Latt, essas ações são indicativas do “comportamento terrorista” e ilegítimo da junta, destacando a necessidade de um governo verdadeiramente legítimo que trate as sentenças de morte de forma justa e dentro dos limites da lei.

Thein Tun Oo, diretor-executivo do Instituto Thayninga de Estudos Estratégicos, que é composto por ex-militares, defendeu a necessidade das sentenças de morte, argumentando que o governo militar controla os três poderes do país.

Segundo ele, do ponto de vista legal, não há fundamentos para contestar esses julgamentos e as sentenças aplicadas, pois estariam de acordo com a legislação vigente. Ele ressaltou que, embora haja o direito de apelar, a decisão final sobre a concessão ou não da pena de morte depende da gravidade dos crimes cometidos pelos réus.

Essa perspectiva destaca o apoio de alguns setores à junta militar e sua interpretação da lei, justificando as sentenças de morte como uma medida legítima dentro do sistema jurídico do país, apesar das preocupações e críticas de organizações de direitos humanos.

Sentenças ilegítimas

No entanto, um advogado da área jurídica afirmou à reportagem que as sentenças são ilegítimas, pois os réus foram julgados em tribunais militares e não receberam uma defesa adequada durante o processo.

De acordo com ele, “há apenas um tribunal militar de apelação disponível. Se esse tribunal rejeitar o recurso, a única opção restante para o réu é apresentar uma petição de clemência ao líder da junta”, o general Min Aung Hlaing.

Essa limitação no sistema jurídico restringe os direitos e as garantias legais dos réus, o que coloca em questão a legitimidade das sentenças impostas. O advogado compartilhou essas informações anonimamente, refletindo a sensibilidade do assunto e possíveis repercussões para aqueles que se manifestam contra a junta militar.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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