Um novo relatório apresentado recentemente pelo Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) destacou que as atrocidades da junta militar em Mianmar não seriam possíveis sem o apoio de nações estrangeiras. Embora não faça referência aos parceiros do regime, diz o documento que os frequentes ataques aéreos, que mataram milhares de civis desde a tomada de poder, não seriam possíveis sem um fornecedor externo.
“A utilização crescente de poder aéreo e de munições pelos militares demonstrou a crescente dependência dos militares em armas pesadas e material que só podem ser adquiridos de fontes estrangeiras”, diz o relatório. “Para tanto, dependem do acesso a moeda estrangeira para adquirir esse equipamento militar, serviços de apoio e combustível de aviação.”
Em junho deste ano, o governo dos EUA fez denúncia semelhante. “Para apoiar a sua repressão brutal em toda a Birmânia, o regime militar tem dependido de fontes estrangeiras, incluindo entidades russas sancionadas, para comprar e importar armas, bens de dupla utilização, equipamento e matérias-primas para fabricar armas”, disse em comunicado o Departamento de Estado e usando o antigo nome do país, vez que a mudança para Mianmar não é reconhecida por Washington.
Na ocasião, os norte-americanos impuseram inclusive sanções a dois bancos que vinham sendo usados para a importação de armas e outros bens pela junta, o Banco Estatal de Comércio Exterior de Mianmar (MFTB) e o Banco Comercial e de Investimentos de Mianmar (MICB).
O arsenal vem sendo utilizado não somente para atingir os grupos rebeldes armados que lutam contra o regime estabelecido com o golpe de Estado de fevereiro de 2021. A população civil não é poupada, de acordo com as Nações Unidas.
“Fontes credíveis verificaram que, até 31 de julho, um mínimo de 3.857 civis, não combatentes e fora de combate foram mortos pelas mãos dos militares, incluindo 610 mulheres e 376 crianças”, diz o relatório, acrescentando que “24.123 indivíduos foram presos por se oporem aos militares, dos quais 19.733 permanecem detidos.”
“Isso é desumanidade na sua forma mais vil”, disse Volker Türk, Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Nos deparamos aqui com um sistema de repressão implacável concebido para coagir e subjugar o povo e para erodir uma sociedade, de modo a que os interesses predatórios dos militares sejam preservados.”
Diante de tal cenário, o ACNUDH reforça o pedido para que o Conselho de Segurança da ONU remeta o caso ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que seria encarregado de coletar evidências e eventualmente julgar os responsáveis pelas atrocidades em Mianmar.
Pede, ainda, que os Estados-Membros estabeleçam novas formas de “garantir que nenhum forneimento direto e indireto de armas, munições, veículos e equipamentos militares, bens de dupla utilização e combustível de aviação militar seja estabelecido ou viabilizado pelo acesso a moeda estrangeira aos militares.”
Armas importadas
Além da Rússia, outros países já foram citados como fonte de armas. Em maio, outro relatório das Nações Unidas afirmou que Índia, China, Singapura e Tailândia forneceram apoio militar avaliado em cerca de US$ 1 bilhão ao regime de Mianmar, inclusive por meio de traficantes de armas que encontraram maneiras de contornar o sistema de sanções estabelecido para conter a junta.
Aquele documento dizia que Rússia, China e Singapura são os principais fornecedores, representando mais de US$ 400 milhões, US$ 260 milhões e US$ 250 milhões, respectivamente, desde o golpe. Essas transações incluem entidades estatais como origem do comércio.
“Isso ocorre porque as sanções não estão sendo aplicadas adequadamente e porque os traficantes de armas ligados à junta conseguiram criar empresas de fachada para evitá-los”, disse Tom Andrews, relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos em Mianmar.
Recentemente, uma operação conjunta contra fraudadores evidenciou a proximidade entre a junta e o governo da China, embora o negócio não tenha envolvido a compra e venda de armamento. A polícia birmanesa efetuou as prisões dos cerca de 1,2 mil suspeitos de integrarem uma rede que aplicava golpes via telefone e internet. Porém, eles serão julgados por Beijing.
“Isso diz algo sobre uma relação mais forte e mais próxima entre a China e o regime militar em Mianmar”, disse na ocasião Htwe Htwe Thein, professor associado de negócios internacionais na Universidade de Curtin, na Austrália, e cujo trabalho é focado no pequeno país do Sudeste Asiático.