Um ano após o golpe de Estado em Mianmar, orquestrado por uma junta militar em 1º de fevereiro de 2021, ruas de todo o país estiveram vazias nesta terça-feira (1º). O esvaziamento urbano foi simbólico: impedida de fazer manifestações, sob pena de punições severas – entre elas prisão perpétua –, a população fez uma greve de silêncio para recordar a data em que a presidente eleita Aung San Suu Kyi foi destituída e presa pelas forças birmanesas, que estabeleceram um regime autoritário desde então. As informações são da Radio Free Asia.
Espaços públicos em todo o país do sudeste da Ásia ficaram desertos a partir das 9h. As exceções foram alguns grupos de resistência que se arriscaram em protestos tímidos, em um dia que em geral foi marcado pela terceira greve de silêncio desde a tomada de poder pelo exército. As anteriores ocorreram em março do ano passado, logo após o golpe, e em dezembro, no Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Uma dona de casa do município de Kyi Myin Daing, na região de Yangon, relatou sob anonimato que o comércio esteve aberto, mas nem consumidores nem pedestres foram vistos de forma expressiva na cidade, que tem mais de 5 milhões de habitantes.
“Durante a primeira greve silenciosa, as ruas estavam vazias, e todas as lojas, fechadas. Mas, desta vez, as autoridades pressionaram os proprietários a permanecerem abertos. Eles foram inclusive convidados a assinar promessas de que o fariam”, detalhou, acrescentando que nas primeiras horas da manhã havia gente pelos mercados, mas, depois das 9h, não se via mais ninguém.
Yangon é o principal foco de resistência aos militares no país, onde 101 pessoas foram condenadas à morte sob a mão-de-ferro de Min Aung Hlaing, general que lidera a junta no poder desde o golpe.
Mesmo assim, há os que ousam resistir à repressão em Mianmar. Thura Aung, um militante da cidade de Mandalay, disse que seu grupo, o Mandalay Forces for Strikes (“Forças Mandalay Para Greves”, em tradução literal), começou a organizar uma manifestação na manhã de terça.
“Faz um ano. O conselho militar não ganhou o controle do país. O poder ainda está nas mãos do povo. A lei e a ordem ainda estão nas mãos do povo”, desafiou ele. “Queremos mostrar que podemos protestar e ficar em silêncio se quisermos em nossa cidade. Saímos para mostrar que não desistimos da revolução mesmo depois de um ano”, afirmou.
Manifestações pró-junta
Em Naipidau, capital do país, fontes disseram que a maioria da população aderiu à greve e ficou em casa. Porém, também houve registro de alguns pequenos desfiles pró-governo nos chamados contraprotestos.
Servidores governamentais relataram que os ministérios da junta emitiram uma ordem que estabelecia a redução do expediente na terça-feira, que ficou das 10h às 15h, o que sugere que eles podem ter sido coagidos a participar de demonstrações de lealdade aos militares fora do horário de trabalho.
“A maioria das pessoas nas ruas hoje são adeptos da junta. Eu vi um grupo de pessoas segurando bandeiras e cartazes mostrando apoio aos militares marchando nesta manhã”, relatou uma das fontes anônimas.
Pelo menos 70 comerciantes em Yangon, Mandalay, Naipidau e outras cidades foram levados sob custódia nos dias que antecederam o aniversário do golpe após terem manifestado apoio à Greve Silenciosa e contrariado a determinação de manterem seus negócios abertos em 1º de fevereiro.
Repúdio internacional
Uma declaração conjunta emitida pela União Europeia (UE) e por ministros das Relações Exteriores de várias nações democráticas observou que, após um ano do golpe de Estado, mais de 14 milhões birmaneses vivem sob necessidade de ajuda humanitária, a economia colapsou, as reformas políticas retrocederam e o conflito avança por todo o país.
“O regime militar é responsável por esta crise, que prejudicou gravemente a paz e a estabilidade em Mianmar e na região”, disse o documento assinado por representantes de Albânia, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Suíça, Reino Unido e os EUA.
A chefe de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), Michelle Bachelet, comparou o conflito a uma guerra civil em entrevista à rede BBC e pediu ao Conselho de Segurança da ONU que tome “ações mais fortes” para que os militares restaurarem a democracia no país.
Por que isso importa?
Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo já causou a morte de ao menos 1,5 mil desde o golpe de 1º de fevereiro de 2021, uma reação dos militares às eleições presidenciais de novembro de 2020.
Na ocasião, o NLD venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro, então, a junta militar, que já havia impedido o partido de assumir o poder antes, derrubou e prendeu a presidente eleita Aung San Suu Kyi.
O golpe deu início a protestos no país, respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais. Centenas de pessoas foram presas sem indiciamento ou julgamento prévio, e muitas famílias continuam à procura de parentes desaparecidos. Jornalistas e ativistas são atacados deliberadamente, e serviços de internet têm sido interrompidos.
No início de dezembro, tropas da junta militar foram acusadas de assassinar 11 pessoas em uma aldeia no noroeste do país. De acordo com uma testemunha, as vítimas, algumas delas adolescentes, teriam sido amarradas e queimadas na rua. Fotos e um vídeo chocantes que viralizaram por meio de redes sociais à época mostravam corpos carbonizados deitados em círculo no vilarejo de Done Taw, na região de Sagaing.
A ação dos soldados seria uma retaliação a um ataque de rebeldes contra um comboio militar. Uma liderança local da oposição afirmou que os civis foram queimados vivos, evidenciando a brutalidade da repressão à população que tenta resistir ao golpe de Estado orquestrado em fevereiro deste ano.