Xi Jinping quer inserir o Sul Global no seu movimento antiamericano

Artigo relata como a China usa sua influência sobre os países em desenvolvimento para tentar moldar uma nova ordem internacional

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Atlantic Council

Por Michael Schuman

No Fórum de Cooperação China-África, que começa em 4 de setembro, Beijing buscará mais uma vez aprofundar seu engajamento com países do Sul Global. O líder chinês Xi Jinping foi, para seu crédito, presciente ao reconhecer as frustrações e aspirações dentro do mundo em desenvolvimento e capitalizou esses sentimentos para construir a influência política e econômica global da China. O evento de três dias, que o Ministério das Relações Exteriores chinês chamou de “o maior evento diplomático que a China sediou nos últimos anos”, é apenas um de uma série de programas, iniciativas e reuniões que Beijing lançou para estreitar seus laços de diplomacia, negócios e comércio com países em todo o Sul Global.

No entanto, nos últimos dois anos, a abordagem de Xi ao mundo em desenvolvimento passou por uma mudança significativa: tornou-se cada vez mais consumida pela competição geopolítica de Beijing com os Estados Unidos e seus aliados e parceiros. Essa mudança terá grandes consequências para as relações de Beijing com o Sul Global, o papel da China na ordem internacional e o curso futuro de seu poder global.

O objetivo da estratégia de Xi é construir uma coalizão de Estados dentro do Sul Global para atuar como um contrapeso ao sistema de alianças globais dos EUA e uma base sobre a qual promover os interesses políticos, econômicos e ideológicos da China. Xi quer minar a ordem internacional baseada em regras liderada pelos EUA criando uma ordem alternativa liderada pela China baseada em princípios políticos não liberais que podem reverter a influência dos EUA e moldar a governança global por meio de instituições e fóruns internacionais.

Essa meta elevou a importância do Sul Global na política externa chinesa. Contrariar as ambições de Xi exigirá que Washington dedique maiores recursos diplomáticos e financeiros e concentre mais atenção no mundo em desenvolvimento, bem como promova sua própria visão para uma governança global mais inclusiva dentro da ordem internacional liberal existente.

Xi Jinping, presidente da China, na celebração do centenário do Partido Comunista Chinês (Foto: divulgação/cpc.people.com.cn
O que impulsiona a busca da China pelo Sul Global

A mudança na abordagem de Beijing para o Sul Global é parte do crescente antiamericanismo de Xi, que está moldando a maioria dos aspectos de seu programa de políticas tanto em casa quanto no exterior. O foco crescente de Xi na “autossuficiência” econômica e no desenvolvimento de tecnologias nacionais por meio de programas industriais liderados pelo Estado é projetado para eliminar as vulnerabilidades da China a potenciais sanções de Washington. Internamente, a preocupação crescente de Beijing sobre ameaças e influência estrangeiras levou a novas regulamentações de segurança que estão intensificando a repressão e alarmando a comunidade empresarial internacional. Em sua política externa, Xi desafiou mais abertamente a ordem liderada pelos EUA, por exemplo, promovendo sua própria estrutura ideológica para remodelar a governança global com sua Iniciativa de Segurança Global e Iniciativa de Desenvolvimento Global.

As motivações para a política de Xi em relação ao Sul Global são semelhantes: proteger a segurança da China e promover os interesses globais chineses em um ambiente de competição acirrada com os Estados Unidos. Inicialmente, o principal propósito de Xi em sua abordagem ao Sul Global era promover conexões políticas e econômicas chinesas com países em desenvolvimento para promover os interesses globais da China. Sua Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative), anunciada em 2013, foi elaborada para fortalecer o comércio, as finanças e os investimentos entre a China e o Sul Global e buscar os interesses comerciais chineses em mercados emergentes. O envolvimento da China e a promoção de fóruns como a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) também visam promover esses laços, bem como aumentar a voz dos países em desenvolvimento em assuntos internacionais. Com todas essas iniciativas, Xi pretendia pintar a China como uma alternativa aos Estados Unidos e seus parceiros e como uma defensora dos interesses das nações mais pobres do mundo.

A transição de Xi rumo ao confronto

Uma mudança na abordagem de Xi começou a se tornar aparente com a eclosão da guerra na Ucrânia. Ao forjar um relacionamento “sem limites” com o presidente russo Vladimir Putin em fevereiro de 2022, enquanto o exército russo estava posicionado em sua fronteira com a Ucrânia preparando-se para invadir, Xi fez uma escolha fatídica: buscar uma postura mais abertamente confrontacional em relação aos Estados Unidos e seus aliados e parceiros que inevitavelmente abriria uma divisão mais profunda entre a China e as democracias aliadas. Quando os tanques de Putin chegaram à Ucrânia três semanas depois, esse resultado se tornou inevitável. A invasão galvanizou a Otan (Organização do Tratado do Atlânico Norte) e as parcerias de segurança dos Estados Unidos com as nações do Indo-Pacífico, permitindo que o presidente dos EUA, Joe Biden, superasse algumas das diferenças dentro dessas alianças no que se refere à política em relação à China.

Como resultado, os Estados Unidos e seus parceiros na Europa e no Indo-Pacífico forjaram uma posição muito mais coordenada e coerente sobre a política da China. Quanto mais Xi buscava relações mais fortes com Putin, mesmo com a guerra na Ucrânia se arrastando, mais dura a política dos aliados dos EUA em relação à China se tornou. Durante a cúpula mais recente do Grupo dos Sete (G7), por exemplo, seus líderes alertaram coletivamente a China para cessar a assistência à Rússia que apoia o esforço de guerra de Moscou ou enfrentar sanções.

A decisão de Xi de se juntar a Putin foi uma escolha consciente, não uma que lhe foi imposta. Antes da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, os líderes da Europa dificilmente tinham uma opinião unânime sobre a China e não estavam totalmente alinhados com a posição de Washington. Beijing vinha progredindo na exploração dessas divergências para dividir os Estados Unidos e seus aliados europeus em questões relacionadas à China. Embora Xi continue a fazer algum esforço para dividir os aliados — ele parece ter identificado o presidente francês Emmanuel Macron como um elo fraco —, sua parceria com Putin tornou essa tarefa significativamente mais desafiadora, se não totalmente impossível.

Xi tem se mostrado disposto a romper com os Estados Unidos e seus aliados para promover um objetivo maior: minar a atual ordem internacional. Ele aparentemente vê a Rússia como uma compatriota crucial nessa busca. “Uma mudança está chegando, o que não acontecia há cem anos”, disse Xi a Putin durante uma visita a Moscou em 2023. “E estamos impulsionando essa mudança juntos.” Putin também pode ajudar Xi em sua busca por outros aspectos dessa agenda antiamericana. Por exemplo, a Rússia está fornecendo uma fonte segura de importações de energia e um mercado-chave para exportações manufaturadas chinesas, a salvo das sanções e barreiras de proteção impostas pelos Estados Unidos e outras economias avançadas, promovendo assim a meta de Xi de reduzir as vulnerabilidades de seu país às políticas de Washington. O aprofundamento dos laços com a Rússia foi um elemento central dessa mudança mais ampla em sua política externa em direção a uma postura mais confrontacional contra os Estados Unidos.

Blocos em construção

Esse mesmo pensamento infectou a estratégia geral de Xi no Sul Global. Não mais contente em simplesmente construir influência entre os países em desenvolvimento, ou mesmo apresentar a China como uma alternativa, ele agora está buscando alistar seus líderes em seu movimento antiamericano. Essa agenda é mais aparente no progresso do grupo BRICS de nações em desenvolvimento. Originalmente baseado em um conceito criado pelo banco de investimentos Goldman Sachs, o fórum foi criado para encorajar uma maior cooperação entre o que deveriam ser as principais economias emergentes do mundo — Brasil, Rússia, Índia e China. (A África do Sul foi adicionada mais tarde.) No ano passado, Xi pressionou com sucesso por uma expansão da filiação ao grupo. Mantendo o espírito inicial do fórum, alguns candidatos óbvios vêm à mente. A Indonésia se destaca, assim como outras nações do Sudeste Asiático, como a Tailândia. A Nigéria também é uma forte possibilidade. No entanto, esses países não foram convidados. Em vez disso, o grupo aprovou a inclusão de dois exportadores de energia do Oriente Médio (Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), um Irã isolado, um Egito economicamente problemático, uma Etiópia extremamente pobre e a Argentina, um país em turbulência financeira quase perpétua.

O que esses países têm em comum é que a China tem influência econômica ou diplomática sobre eles, ou quer atraí-los para parcerias mais estreitas. Egito e Etiópia têm laços políticos estreitos com a China — e dívidas pesadas com credores chineses. Beijing está ajudando o Egito a construir uma nova capital inteira. O Irã, sob sanções ocidentais, é, como a Rússia, dependente do apoio diplomático e econômico chinês. Na época da expansão, a Argentina estava evitando um calote em empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao recorrer a fundos do Banco Central da China. E Beijing está claramente cortejando os sauditas e os emiradenses como parceiros no Oriente Médio. Xi provavelmente pretende que esses mesmos países apoiem os objetivos e interesses da política externa chinesa, não apenas dentro do BRICS, mas também em outros fóruns e iniciativas. No mais recente Fórum da Nova Rota da Seda, realizado em outubro de 2023 em Beijing para celebrar a primeira década do programa, líderes de três dos BRICS — Rússia, Etiópia e Argentina — falaram na cerimônia de abertura.

Em outras palavras, a expansão do BRICS foi projetada para lotar o fórum com países que potencialmente apoiarão a agenda antiamericana de Xi e o ajudarão a transformar esse grupo e outros em alternativas ao G7 e outros fóruns internacionais influenciados pelos EUA. Beijing enfatiza persistentemente que os países do BRICS devem se unificar em torno de uma agenda para promover os interesses do Sul Global — e da China. Em uma reunião do BRICS em junho, o Ministro das Relações Exteriores chinês Wang Yi enfatizou que a expansão da filiação ao grupo inauguraria “uma nova era para o Sul Global ganhar força por meio da unidade”, de acordo com um resumo de seus comentários publicado pela agência de notícias estatal chinesa Xinhua. O resumo continuou dizendo que Wang instou as nações do BRICS a se posicionarem contra “a politização e a securitização de questões econômicas e o aumento de sanções unilaterais e barreiras tecnológicas” — tudo isso é um código para as políticas dos EUA às quais Beijing se opõe.

Mas Xi enfrenta desafios. Uma indicação disso é a decisão do novo presidente da Argentina de rejeitar o convite para se juntar ao BRICS. Quanto mais o antiamericanismo de Xi impulsiona suas políticas, mais as relações de Beijing com o mundo em desenvolvimento podem ficar sob tensão. Inerentemente, e abertamente, Beijing está pressionando governos do Sul Global a tomarem partido contra os Estados Unidos. Por exemplo, Beijing passou a esperar que os líderes do mundo em desenvolvimento aprovassem publicamente a Iniciativa de Segurança Global, cujos princípios vão contra os ideais e práticas de assuntos internacionais favorecidos pelos Estados Unidos e seus aliados. Na preparação para a cúpula de paz da Ucrânia realizada na Suíça em junho, da qual a China se recusou a participar, diplomatas chineses supostamente pressionaram os países em desenvolvimento a apoiar uma proposta de paz alternativa chinesa. Um diplomata chamou esse esforço de “boicote sutil” à conferência de paz, e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky acusou publicamente a China de ajudar a Rússia a sabotar a cúpula.

Uma melhor abordagem dos EUA para o Sul Global

Washington tem sido culpado de comportamento semelhante, mas os formuladores de políticas dos EUA passaram a entender que tais métodos “com a gente ou contra a gente” podem sair pela culatra com os membros do Sul Global com a intenção de traçar um curso independente nos assuntos mundiais. Essa percepção é evidente na flexibilidade do governo Biden nas relações com a Índia, por exemplo. Se a abordagem da China ao Sul Global tentar forçar suas elites políticas a tomar partido, Beijing pode minar seus próprios esforços para cortejar seu apoio. Alguns países podem aderir voluntariamente à agenda antiamericana de Beijing, como a Rússia e o Irã, ambos já alienados do Ocidente. A maioria, porém, se beneficia muito de seus laços com os Estados Unidos para arriscar cortá-los.

Pressionar os governos do Sul Global a tomarem posições contra Washington também pode azedar a opinião pública em relação à China dentro do mundo em desenvolvimento. Em uma pesquisa recente na Tailândia, uma parcela semelhante de entrevistados (cerca de três quartos) sentiu que os Estados Unidos e a China fazem mais bem do que mal à segurança na Ásia, uma indicação das visões equilibradas mantidas pelas pessoas naquela importante nação do Sudeste Asiático, mesmo com a intensificação da competição entre as duas potências.

O crescente antiamericanismo de Xi também o levou a tomar decisões estrategicamente questionáveis. Beijing rejeitou os apelos de Washington para se juntar a uma coalizão internacional para conter a turbulência no Mar Vermelho causada pelos Houthis, que têm atacado navios que passam pelo Canal de Suez. A inação de Beijing parece ser motivada por sua preferência em usar a crise do Mar Vermelho para atacar a política dos EUA no Oriente Médio. Um enviado chinês às Nações Unidas vinculou a situação no Mar Vermelho ao conflito entre Israel e o Hamas em Gaza, sinalizando que a agitação na região é uma consequência da política externa dos EUA. O custo, no entanto, pode estar minando a reivindicação de Beijing de ser um ator mais responsável no Oriente Médio do que os Estados Unidos e irritando parceiros importantes que não apoiam os Houthis, como a Arábia Saudita.

Os líderes do Sul Global certamente serão sensíveis às tentativas da China de usá-los como ferramentas em um jogo geopolítico contra os Estados Unidos. Isso potencialmente abre oportunidades para Washington apresentar os Estados Unidos como mais inclusivos, encorajando um maior diálogo Norte-Sul. Esforços para elevar as vozes das elites políticas do Sul Global na governança da atual ordem mundial podem contribuir muito para combater uma China que se tornou mais decidida a alistá-los em uma campanha contra essa ordem. O governo Biden já tentou progredir nessa direção com iniciativas como a Parceria para a Cooperação Atlântica, que inclui mais de 30 países que fazem fronteira com o Oceano Atlântico.

Mas muito mais pode ser feito. Por exemplo, uma expansão adicional do Grupo dos Vinte (G20) para aumentar a representação do Sul Global — já iniciada no ano passado com a inclusão da União Africana (UA) — deve ser considerada. Além disso, o G7 poderia criar fóruns mais formais para abordar questões Norte-Sul. Nesses esforços, Washington deve evitar criar a impressão de que escolher participar de iniciativas lideradas pelos EUA impede a interação com a China. Tentar convencer o Sul Global a ser anti-China provavelmente seria tão contraproducente quanto os novos esforços de Beijing para torná-lo antiamericano.

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