ARTIGO: enfermeiros contam seus desafios na pandemia do Covid-19

A pedido da Cruz Vermelha, quatro profissionais dividiram os impactos da pandemia do coronavírus nos seus trabalhos

Este artigo foi originalmente publicado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Para prestar uma homenagem no Dia Internacional dos Enfermeiros, no dia 12 de maio, o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) convidou quatro profissionais da área para contar o impacto da pandemia do novo coronavírus no dia a dia do trabalho.

Natasha Moon, enfermeira chefe em Maiduguri, Nigéria

ARTIGO: enfermeiros contam seus desafios na pandemia do Covid-19
A enfermeira Natasha Moon trabalha no principal hospital de Maiduguri, na Nigéria (Foto: CICV/Reprodução)

Nós somos uma emergência dentro de outra: trabalhando em uma zona de conflito e agora enfrentando uma enorme crise de saúde pública.

Estou baseada no principal hospital de Maiduguri, como parte da equipe cirúrgica do CICV, composta por profissionais locais e de outros países. Nossa missão é tratar as pessoas feridas pelo conflito que vem afetando o nordeste da Nigéria há mais de dez anos.

Continuamos recebendo um grande fluxo de pacientes após um ataque ou pico do conflito. O que mudou é a forma como lidamos com a situação.

Nós montamos barracas de triagem e estamos treinando o pessoal em medidas de prevenção. Nós também tivemos que alterar nossos critérios de admissão. Aceitamos apenas na emergência aquelas pessoas que as vidas estejam em perigo ou se correm o risco de amputação.

Nós tomamos medidas de distanciamento social e tentamos liberar espaço nas alas para minimizar o contato. É mais fácil falar do que fazer, o hospital é um lugar muito cheio.

Maiduguri é a casa de cerca de 3,5 milhões de habitantes, incluindo um milhão de pessoas que buscam refúgio na cidade. Eles vivem em campos lotados espalhados pela cidade ou em comunidades. O hospital é um dos poucos lugares em que podem procurar assistência médica.

Quando não estou com o CICV, trabalho em unidades de tratamento intensivo no sistema público de saúde do Reino Unido. Eu acho que você pode fazer comparações entre o que fazemos na Nigéria e o que meus colegas fazem em casa.

Todos nós estamos prestando o melhor atendimento possível aos nossos pacientes em circunstâncias difíceis. Como profissionais de saúde, você está mais vulnerável. Você entende o risco e aceita de bom grado assumi-los.

O coronavírus é desconhecido para todos, por isso é mais importante do que nunca estar disponível aos nossos pacientes. A tarefa é a mesma estando em Maiduguri ou no Reino Unido.

Se eu estivesse em casa, eu estaria trabalhando com a minha equipe, fazendo o meu melhor pelos pacientes e capacitando os outros profissionais e os apoiando. É exatamente o que eu estou fazendo aqui.

Angela Neville, enfermeira cirúrgica no Sudão do Sul

Como uma enfermeira, você faz o máximo para cuidar das pessoas que estão mais vulneráveis. Isso não muda, não importa em que parte do mundo está trabalhando. O que muda são as decisões que você tem que tomar.

Eu acabei de voltar ao Sudão do Sul, onde faço parte da equipe de cirurgia em um hospital do CICV em uma vila remota no centro do país.

O local só é acessível por avião ou helicóptero. Na estação de chuva, às vezes nem o helicóptero consegue pousar por causa da lama, te deixando completamente isolado.

Infelizmente, o conflito e a violência entre as comunidades têm prejudicado os primeiros anos do Sudão do Sul. Nós tratamos as pessoas que sofrem os efeitos dessa violência.

Você nunca se acostuma a ajudar pessoas que levaram tiros. As feridas que vemos são muito diferentes que qualquer coisa de nossa vida cotidiana.

Depois de um pico do conflito, vemos uma súbita onda de feridos chegando, atingidos por balas ou com outros ferimentos graves. A situação fica muito intensa e é quando temos que tomar decisões críticas rapidamente.

Com recursos limitados, as decisões podem ser muito difíceis. Às vezes, depois você pensa se tomou a decisão certa. Você se questiona.

Eu sei que as escolhas que eu faço no Sudão do Sul são muito diferentes das que eu fazia no hospital que eu trabalhava em Londres, puramente baseado nos recursos que temos disponíveis.

O sistema de saúde já está com dificuldades. O país tem apenas quatro ventiladores. Não há suprimentos médicos, instalações e profissionais para lidar com a situação.

Então, você tem que considerar o enorme número de pessoas, cerca de 1,5 milhão, que foram retiradas de suas casas devido ao conflito. Elas enfrentam uma batalha por água potável, sabão, comida e assistência médica.

Além dos fatores médicos, há outras questões que tornam a vida de uma enfermeira no Sudão do Sul um pouco mais interessante: o calor. A temperatura chega a 50ºC na estação seca.

Também temos que enfrentar as cobras e escorpiões. Em uma das minhas missões, estávamos tratando uma paciente que foi levada ao hospital após ser picado por uma cobra.

Ela estava deitada na cama quando apontou para o teto. Havia uma cobra mamba-verde logo acima dela. Com certeza foi um início de dia interessante.

Frances Devlin, coordenadora de saúde em Damasco, na Síria

A Síria entrou em seu décimo ano de conflito. Um grande número de instalações médicas foram destruídas nos combates. Há um enorme problema na restrição do acesso da população ao sistema de saúde. Acrescente uma crise de saúde pública e as coisas se tornam muito piores. É muito preocupante.

A oferta do sistema de saúde é diferente em toda a Síria. Existe um conflito constante dentro e ao redor de Idlib, então há uma grande necessidade por assistência e acesso limitado aos serviços de saúde.

A estimativa é de que existam 6,5 milhões de pessoas deslocadas dentro da Síria, que geralmente vivem em acampamentos ou em acomodações compartilhadas.

No acampamento de Al Hol, no nordeste do país, por exemplo, moram 65 mil pessoas. As barracas costumam abrigar várias famílias, por isso seria difícil para elas cumprirem as medidas de isolamento social.

Trabalhando com parceiros, estamos no processo de criação de um centro de isolamento para os acampamentos, o que significa que casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 podem ser isolados longe dos acampamentos densamente povoados.

Mesmo assim, será difícil para as pessoas infectadas receberem tratamento médico. Deixar o acampamento para ir ao hospital em Hasakah não é fácil.

O CICV está apoiando várias unidades de saúde pelo país com suprimentos médicos e equipamentos. Além disso, um dos nossos focos no momento é o treinamento dos profissionais de saúde.

Em uma crise de saúde pública, é crucial para a nossa segurança e para o bem dos pacientes que saibamos usar o equipamento de proteção individual e fazer a triagem apropriada.

É o básico, mas em um país onde muitos médicos experientes foram embora, aqueles que ficaram nem sempre têm as capacidades necessárias.

Quando vejo como o mundo está respondendo ao coronavírus, é impressionante ver a explosão de afeto por enfermeiros e médicos, seja em casa na Irlanda ou em qualquer outro lugar.

Com certeza há um sentimento de orgulho em pertencer a comunidade de enfermeiros, que estão lá linha de frente todos os dias, lutando não só contra o Covid-19. É bom vê-los finalmente recebendo o reconhecimento que merecem.

Chrissy Alcock, especialista em enfermagem de urgência e emergência em Caracas, na Venezuela

Eu estava em Serra Leoa em 2015, durante a epidemia de Ebola, e em Bangladesh enfrentando o surto de difteria entre os refugiados do estado de Rakhine em 2018. É muito difícil comparar os dois contextos com o que estamos enfrentando neste momento com o coronavírus.

Agora, não estamos vendo um número elevado de casos entrando pelas portas do hospital que o CICV apoia em Caracas, o que não quer dizer que não há casos na comunidade.

É muito difícil prever o que vai acontecer, então temos que usar esse tempo para nos preparar para o pior cenário. Faço parte da equipe que prepara o hospital para um potencial surto do coronavírus.

Estamos treinando os funcionários no uso de equipamentos de proteção individual, analisando o sistema de triagem, identificando espaços para gerenciar o fluxo de pacientes e preparando os suprimentos e equipamentos médicos. Estamos fazendo tudo isso ao mesmo tempo que trabalhamos nas funções comuns do hospital.

A vida é difícil para a população da Venezuela. Apesar do país ter uma das maiores reservas de petróleo, a hiperinflação chegou a níveis significativos, deixando grande parte da população sem acesso a comida, assistência médica de qualidade e emprego.

A violência crônica continua afetando parte do país. E não é fácil para os hospitais obterem abastecimento constante de água, eletricidade, medicamento e profissionais de saúde para garantir seu pleno funcionamento.

A migração de pessoas da Venezuela é bem noticiada. Descobrimos que isso faz com que médicos e enfermeiros com menos experiência ocupem lugares de profissionais mais experientes.

Parte do meu trabalho é treinar os clínicos em emergência e trauma. Também treinamos todos os profissionais em como responder e se comportar durante a pandemia.

Há um verdadeiro companheirismo aqui e na comunidade de enfermeiros em todo o mundo. Eu trabalhava no hospital de St Thomas, em Londres, e ainda me sinto parte da família de lá.

É muito triste quando você ouve falar sobre profissionais de saúde que morreram enquanto lutavam contra a pandemia. Nós nos colocamos em perigo ao tratar os pacientes.

Neste ano internacional da enfermagem e obstetrícia [eleito pela OMS], eu gostaria de prestar uma homenagem ao trabalho de todos os meus colegas de enfermagem e obstetrícia ao redor do mundo.

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