Este artigo foi publicado originalmente no Blog do FMI.
por Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional
O sofrimento causado pela crise da Covid-19 é maior entre aqueles que já são mais vulneráveis. Esta calamidade poderia levar a um aumento significativo da desigualdade de renda. Poderia também ameaçar os avanços no desenvolvimento, desde os ganhos do rendimento escolar até a redução da pobreza.
Novas estimativas sugerem que até 100 milhões de pessoas no mundo inteiro poderiam ser empurradas para a pobreza extrema, eliminando todos os progressos obtidos nos últimos três anos na diminuição da pobreza.
É por isso que as autoridades terão que fazer tudo o que estiver ao seu alcance para promover uma recuperação mais inclusiva, que beneficie todos os segmentos da sociedade.
Nosso estudo mais recente, elaborado em colaboração com o Banco Mundial para o G20, analisa qual a melhor forma de aumentar o acesso das pessoas às oportunidades, não importa quem sejam ou onde estejam.
O acesso mais igualitário às oportunidades está associado ao crescimento mais forte e mais sustentável, bem como a maiores ganhos de renda para os pobres. Mas destravar o potencial pleno de todos os indivíduos não é uma tarefa fácil.
A realidade é que as famílias de baixa renda enfrentam riscos de saúde mais elevados ligados ao vírus. Elas sofrem as piores consequências de taxas recordes de desemprego e têm menos chances de tirar proveito do ensino à distância. A nutrição infantil também pode sofrer com a interrupção das refeições escolares.
Segundo estimativas da ONU, mais de meio bilhão de crianças no mundo inteiro perderam o acesso à educação por causa das medidas de isolamento tomadas para combater o coronavírus. Muitas delas não voltarão à escola após a pandemia, e as meninas são mais suscetíveis do que os meninos a abandonar os estudos.
Essas desigualdades são verdadeiramente chocantes, mas não são inesperadas. Sabemos por experiência própria, e a partir das análises recentes do FMI, que as grandes epidemias muitas vezes exacerbam a desigualdade de renda já existente.
Uma resposta de políticas como nunca se viu
A boa notícia é que os governos de todo o mundo lançaram mão de medidas extraordinárias de políticas para salvar vidas e proteger meios de subsistência, com esforços redobrados para proteger os pobres; muitos países ampliaram a ajuda alimentar e as transferências de renda direcionadas. As medidas fiscais tomadas em escala mundial somam até agora cerca de US$ 10 trilhões.
Contudo, dada a gravidade da crise, ainda não necessários esforços substanciais. É preciso tomar medidas para evitar sequelas na economia, com a perda de empregos e o aumento da desigualdade. É evidente que ampliar o acesso a oportunidades é hoje mais crítico do que nunca se quisermos evitar o aumento persistente da desigualdade.
Com isso em mente, eu gostaria de assinalar três prioridades:
1. Utilizar o estímulo fiscal com sabedoria
Durante a fase de recuperação, será preciso aplicar um estímulo fiscal substancial para estimular o crescimento e o emprego. Sabemos pela experiência da crise financeira mundial que o aumento da desigualdade tende a ser maior nos países que registram as maiores perdas do produto em relação à tendência pré-crise.
Contudo, não basta garantir o retorno ao crescimento. Não podemos esquecer que as reformas e os investimentos feitos após a crise financeira tornaram os sistemas bancários mais resilientes. Precisaremos de um impulso similar nas reformas e nos investimentos durante a fase de recuperação para melhorar consideravelmente as perspectivas econômicas dos mais vulneráveis.
Assim, o que precisamos é de um estímulo fiscal que traga benefícios a todos. Isto significa ampliar o investimento público em cuidados de saúde para proteger os mais vulneráveis e minimizar os riscos de futuras epidemias. Significa também fortalecer as redes de proteção social; expandir o acesso a educação de qualidade, água limpa e saneamento; e investir em infraestruturas climaticamenteinteligentes. Alguns países poderiam também expandir o acesso a cuidados infantis de alta qualidade, que podem estimular a participação feminina na força de trabalho e o crescimento a longo prazo.
Esses esforços são fundamentais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Mas como podemos elevar de forma significativa os gastos quando tantos países enfrentam hoje altos níveis da dívida pública? A dívida pública nos mercados emergentes subiu para níveis não vistos em 50 anos.
O FMI e o Banco Mundial defenderam a suspensão do serviço da dívida como uma medida de efeito imediato para os países que não dispõem de recursos financeiros para reagir adequadamente à crise. O G20 concordou em suspender o pagamento da dívida oficial bilateral dos países mais pobres, de 1 o de maio até o final de 2020.
A médio prazo, haverá espaço para melhorar a eficiência dos gastos e mobilizar mais receitas públicas. Há margem também para reformas tributárias: por exemplo, algumas economias avançadas e emergentes poderiam elevar as alíquotas superiores do imposto de renda pessoa física sem prejudicar o crescimento. Os países poderiam assegurar que o regime de tributação das empresas captura uma parcela apropriada dos ganhos extraordinários auferidos pelos “vencedores” da crise, incluindo, talvez, os provenientes de atividades digitais. E deveria haver um esforço concertado para combater os fluxos ilícitos e fechar as brechas fiscais, nos planos interno e internacional.
2. Empoderar a próxima geração por meio da educação
Os transtornos na educação causados pelo vírus deixaram milhões de crianças em risco de “pobreza na aprendizagem”, que significa a incapacidade de ler e compreender um texto simples aos 10 anos de idade. A pobreza na aprendizagem já é excessivamente elevada nos mercados emergentes e países em desenvolvimento por causa do baixo índice de acesso à educação de qualidade.
O efeito de longo prazo da crise em termos de brechas de renda e educação também nos preocupa. Em nosso estudo, examinamos a ligação entre educação e desigualdade. Um aumento de 10 pontos no coeficiente de Gini de um país (foram observados aumentos dessa magnitude em algumas economias durante a crise financeira mundial) está associado a um rendimento escolar consideravelmente inferior, uma defasagem de cerca de meio ano. Isso poderia reduzir os rendimentos ao longo da vida e perpetuar as brechas de renda e de oportunidade através das gerações.
Em outras palavras, salvaguardar nosso futuro significa salvaguardar nossas crianças. É por este motivo que precisamos investir mais em educação – não apenas gastar mais em escolas e no aprendizado à distância, mas também melhorar a qualidadeda educação e o acesso a oportunidades de aprendizado e requalificação por toda a vida.
Esses esforços podem gerar grandes dividendos em termos de crescimento, produtividade e qualidade de vida. Simulações com base em um modelo que reflete uma economia como a do Brasil mostram que reduzir a brecha de rendimento escolar em um quarto em relação à média da OCDE poderia dar um impulso de mais de 14% na produção econômica.
3. Explorar o potencial da tecnologia financeira
A Covid-19 desencadeou uma migração em massa do analógico para o digital. Mas essa transição não beneficiou a todos, e o crescente fosso digital deverá ser um dos legados da crise.
O que as autoridades podem fazer? Uma prioridade básica será ampliar o acesso das famílias de baixa renda e das pequenas empresas aos produtos financeiros, o que possibilitará às famílias alisar o consumo diante de choques e às empresas realizar investimentos produtivos. Esta “revolução da inclusão” está hoje ganhando impulso, com os governos a mobilizar um volume recorde de recursos para fornecer auxílio emergencial na forma de transferência de renda. No Paquistão e no Peru, por exemplo, os novos programas de apoio abrangem um terço da população.
Alcançar os mais vulneráveis pode ser um desafio nas economias em desenvolvimento, onde o setor informal responde por quase 70% dos empregos. Mas é aí que as oportunidades das fintech se multiplicam. Basta lembrar que cerca de dois terços de todos os adultos não bancarizados (1,1 bilhão de pessoas) têm telefone celular, e um quarto deles tem acesso à internet. O uso de contas bancárias para efetuar pagamentos rotineiros do governo aos cidadãos poderia reduzir em 100 milhões em todo o mundo o número de adultos sem conta bancária, e as oportunidades são ainda maiores no setor privado.
É claro que os governos precisam também administrar os riscos das fintech. São necessárias reformas para estimular a concorrência, reforçar a proteção dos consumidores e combater a lavagem de dinheiro. Encontrar o ponto de equilíbrio será fundamental para reduzir a desigualdade e estimular o crescimento.
Nossos estudos mostram que o maior acesso às finanças e tecnologia está associado à maior mobilidade intergeracional de renda. E estimamos que existe uma diferença de 2 a 3 pontos percentuais do PIB no crescimento a longo prazo entre os países com inclusão financeira e seus pares menos inclusivos.
Em todas essas áreas, o FMI está cooperando com o Banco Mundial e muitos outros parceiros para apoiar os países neste momento de crise. Estamos profundamente empenhados em ajudar os grupos vulneráveis por meio de nossa assistência técnica prática, assessoramento em políticas e programas de financiamento, e passamos a atribuir mais ênfase a questões ligadas aos gastos sociais, como saúde, educação e redes de proteção.
À medida que avançam nesse processo, todos os governos terão que se preparar para promover uma recuperação mais inclusiva. Isto significa tomar as medidas corretas, sobretudo no que se refere ao estímulo fiscal, educação e fintech. E também significa compartilhar ideias, aprender com os outros e estimular um maior sentimento de solidariedade.
Se há uma lição a extrair desta crise, é que a força de nossa sociedade é medida pelo seu elemento mais fraco. Esse deve ser o princípio a nortear nossa busca de um mundo mais resiliente após a pandemia.