Como a Rússia, Belarus também recebe crianças ucranianas de regiões ocupadas, admite autoridade

Chefe da Cruz Vermelha belarussa diz que menores são levados a Belarus para fins de "melhorias de saúde", ato que pode configurar genocídio

Belarus também tem recebido crianças provenientes de regiões da Ucrânia ocupadas pela Rússia. Dzmitry Shautsou, secretário-geral da Cruz Vermelha belarussa, confirmou a participação do país no processo de transferência de menores coordenado por Moscou, que pode configurar genocídio e levou à emissão, em março deste ano, de um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin. As informações são da rede ABC News.

Shautsou fez a confissão em entrevista à emissora estatal Belarus 1 TV, na quarta-feira (19). Ele falou durante visita às regiões de Luhansk e Donetsk, controladas por Moscou desde 2014. Segundo ele, o objetivo é levar as crianças a Belarus para fins de “melhorias de saúde”. A Cruz Vermelha belarussa, disse, é “parte ativa” no processo e “continuará sendo”.

Em setembro de 2022, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) chegou a noticiar uma parceria com a Cruz Vermelha belarussa para abrigar crianças ucranianas em Belarus. As duas entidades teriam organizado “férias de verão em centros recreativos em todas as regiões do país”, com o objetivo de “ajudar as crianças a superarem o impacto da crise.”

Entretanto, o relato do Unicef sugere que os menores estavam acompanhados dos pais, parte de um grupo de 46 mil ucranianos que fugiram para Belarus em meio à guerra. Shautsou, por sua vez, não deixou claro se as alegações feitas à TV de Belarus estão relacionadas ao programa em parceria com as Nações Unidas.

A admissão do secretário-geral da Cruz Vermelha belarussa tem um agravante, pois surge no momento em que ao menos 16 órfãos, todos supostamente levados a Belarus para uma curta temporada de verão, são considerados desaparecidos.

Pavel Latushko, um ativista belarusso que faz oposição ao presidente Alexander Lukashenko, disse ao jornal Novaya Gazeta que diversos menores jamais retornaram aos territórios ucranianos ocupados ao fim do prazo previamente estabelecido para que ficassem em Belarus.

Família ucraniana evacuada de Irpin, região de Kiev, Ucrânia, março de 2022 (Foto: Julia Kochetova/Unicef)

“Os últimos dados que temos são de órfãos que não foram devolvidos ao território ocupado da Ucrânia”, disse Latushko. “Eles desapareceram, seu rastro esfriou no território da Federação Russa. Não podemos relatar informações sobre onde eles estão atualmente.”

De acordo com Latushko, os nomes de 16 órfãos desaparecidos foram identificados pelas autoridades. “Mas isso é só o começo. Infelizmente, achamos que existem cerca de 200 deles”, declarou.

E a realidade pode ser ainda mais estarrecedora. Em junho, o secretário do Estado da União de Rússia e Belarus, Dmitry Mezentsev, já havia admitido que cerca de duas mil crianças foram retiradas de Donetsk e Luhansk e levadas de “férias” para resorts de saúde na região de Minsk, capital belarussa. Trata-se de um programa estabelecido por Minsk e Moscou, sem ligação com o Unicef.

No caso dos dois mil menores, o secretário alega que familiares ou responsáveis deram aval, argumento no mínimo questionável, vez que o histórico indica a possibilidade de que a aprovação tenha sido obtida sob coação.

Um estudo do Laboratório de Pesquisa Humanitária (HRL) da Universidade de Yale, divulgado em fevereiro, chamou a atenção para o caso de menores ucranianos levados para campos de reeducação geridos pela Rússia. Moscou também alegou ter o aval de familiares ou responsáveis, mas o estudo diz que a aprovação foi obtida sob coação.

No estudo, o HRL diz ainda que elementos específicos do acordo firmado com familiares ou responsáveis foram violados, como o prazo de permanência e os procedimentos para o reencontro com os filhos. Aqueles que se recusam a assinar o documento invariavelmente são ignorados e perdem os filhos mesmo assim.

Reação internacional

A confissão do chefe da Cruz Vermelha de Belarus gerou reações imediatas. Dmytro Kuleba, ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, instou o Tribunal Penal Internacional (TPI) a emitir um mandado de prisão contra Shautsou, como fez com Putin e Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Comissária para os Direitos da Criança no gabinete do líder russo. Ambos são acusados de cumplicidade na deportação e transferência ilegais de crianças de áreas da Ucrânia ocupadas para a Rússia.

Nas palavras de Kuleba, reproduzidas pela ABC News, o belarusso “confessou publicamente o crime de deportação ilegal de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia.”

Por sua vez, a Federação Internacional da Cruz Vermelha (IFRC, na sigla em inglês) disse que sequer sabia da visita de Shautsou a Luhansk e Donetsk. “Não fomos informados da visita, nem estávamos envolvidos em nenhuma das atividades, inclusive com crianças”, disse a entidade em comunicado, criticando ainda o fato de a autoridade ter aparecido nas imagens com um símbolo usado pelos russos durante a guerra.

No texto, a IFRC diz que entrou em “contato com a Cruz Vermelha de Belarus para expressar nossa grande preocupação e interromper qualquer atividade semelhante no futuro”, embora não tenha citado expressamente o caso das crianças ucranianas retiradas das regiões ocupadas.  

“É importante observar que o secretário-geral da Cruz Vermelha de Belarus não fala em nome da IFRC ou de qualquer outro componente do movimento, e suas declarações não representam nossos pontos de vista”, afirma o comunicado, acrescentando que o caso foi encaminhado a “um órgão independente que investiga e trata de supostas violações de integridade.” 

Crime de guerra e genocídio

A deportação em massa forçada de pessoas durante um conflito é classificada pelo Direito Internacional Humanitário como um crime de guerra. A “transferência forçada de crianças”, particularmente, configura um ato genocida. No caso da guerra da Ucrânia, tais denúncias surgiram ainda nos primeiros dias de combate e desde então vêm aumentando.

Em junho de 2022, menos de quatro meses após a invasão russa, a então alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para os direitos humanos, Michelle Bachelet, disse que seu escritório investigava tais alegações. Ela destacou a suspeita de que crianças ucranianas órfãs vinham sendo adotadas por famílias russas sem o devido procedimento legal e citou relatos de que a Rússia estava “modificando a legislação existente para facilitar o andamento das adoções” em Donetsk e Luhansk. 

Em fevereiro deste ano, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia usou a palavra “genocídio” para definir a abdução de crianças ucranianas durante a guerra. Ele se manifestou em mensagem de vídeo exibida em sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“O crime mais assustador é que a Rússia rouba crianças ucranianas”, disse Kuleba no evento realizado em Genebra, na Suíça, acrescentando que tais ações constituem “provavelmente a maior deportação forçada da história moderna”. E sentenciou: “Este é um crime genocida.”

A denúncia foi reforçada por Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha. “O que poderia ser mais desprezível do que tirar as crianças de suas casas, longe de seus amigos, de seus entes queridos?”, questionou ela na mesma sessão do Conselho.

A chefe da diplomacia alemã citou o caso de 15 crianças que teriam sido levadas de Kherson ainda no início da guerra, sendo que a mais jovem tinha nove anos à época. “Não vamos descansar até que todas essas crianças estejam em casa”, afirmou a ministra. “Porque os direitos das crianças são direitos humanos, e os direitos humanos são universais.”

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