Autópsias revelam sinais de tortura e maus-tratos contra prisioneiros ucranianos mortos na Rússia

Corpos devolvidos à Ucrânia chegam mutilados e em decomposição; famílias descobrem mortes somente meses depois

Ao menos 206 prisioneiros de guerra ucranianos morreram enquanto estavam detidos pela Rússia desde o início da invasão em larga escala, em fevereiro de 2022, segundo dados do governo da Ucrânia. Informações coletadas por autoridades ucranianas, entidades de direitos humanos e peritos forenses indicam que maus-tratos e tortura foram fatores determinantes para parte dessas mortes, conforme relata a agência Associated Press (AP).

Exames realizados em corpos devolvidos pela Rússia revelaram lesões compatíveis com espancamentos, eletrocussão e desnutrição severa. Em muitos casos, os corpos foram entregues em avançado estado de decomposição ou com órgãos internos removidos, dificultando a definição da causa da morte.

De acordo com um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) de 2024, 95% dos prisioneiros de guerra ucranianos libertados relataram ter sofrido tortura “sistemática” enquanto estavam em cárcere russo.

Serhii Hryhoriev, um dos prisioneiros, foi capturado em Mariupol em abril de 2022. A Cruz Vermelha informou à família que ele estava vivo e registrado como prisioneiro, o que garantiria sua proteção sob a Convenção de Genebra. No entanto, seu corpo só foi devolvido quase dois anos depois. A certidão de óbito russa apontava derrame cerebral como causa da morte. Já a autópsia feita em Kiev indicou hemorragia provocada por trauma abdominal, com lesão no baço.

Soldado ucraniano com a bandeira do país às costas (Foto: x.com/DefenceU//divulgação)

Segundo o sobrevivente Oleksii Honcharov, que dividiu o cárcere com Hryhoriev na colônia penal de Kamensk-Shakhtinsky, todos os detentos eram espancados com frequência. “Todo mundo apanhava, sem exceção. Uns mais, outros menos, mas todos sofriam”, relatou. Ele também afirmou que Hryhoriev foi deixado em uma cela escura e úmida após piora no estado de saúde e morreu no local em maio de 2023.

A médica legista Inna Padei, que realizou dezenas de autópsias em corpos de ex-prisioneiros, relatou fraturas cranianas, sinais de gangrena, infecções não tratadas e emaciação extrema. “Essas lesões nem sempre são a causa direta da morte, mas indicam claramente o uso de força e tortura”, disse. Em um dos casos, o óbito foi registrado como falência cardíaca, mas o corpo apresentava marcas de eletrocussão e agressões recentes.

A falta de informações oficiais sobre o paradeiro dos prisioneiros e as condições dos cárceres russos têm sido denunciadas por organizações internacionais. Segundo a Anistia Internacional, a Rússia impede o acesso de grupos de monitoramento e equipes médicas aos locais de detenção. As famílias, muitas vezes, só descobrem o destino de seus parentes meses ou anos depois da morte.

Halyna Hryhorieva, esposa de Serhii, recebeu o corpo do marido apenas em março de 2024, quase um ano após o falecimento. “Agora temos um anjo no céu cuidando de nós”, disse ela, que, junto com as filhas, tatuou no pulso a frase que ele costumava repetir: “Tudo vai ficar bem”.

Pressão psicológica

Prisioneiros ucranianos libertados relatam que, além da violência física, sofriam pressão psicológica para mudar de lado e aderir ao Exército russo se quisessem sobreviver. Segundo o médico militar Volodymyr Labuzov, ex-prisioneiro também capturado em Mariupol, as propostas surgiam durante sessões de espancamento e ameaças, com um objetivo declarado: integrar as forças de Moscou em uma ofensiva contra a Europa.

“Durante um dos interrogatórios, esses torturadores me ofereceram cooperação. Disseram que o único objetivo era ‘vir conosco e juntos ocupar a Europa’”, afirmou Labuzov à rede Euronews.

O médico relatou ainda que quase todos os soldados ucranianos detidos recebem esse tipo de proposta, mesmo os que não têm qualquer experiência anterior de combate. Além dos militares, milhares de civis, inclusive crianças, estariam presos sob as mesmas condições, sem qualquer acusação formal.

“Eles devem ser devolvidos sem qualquer condição, sem qualquer acordo”, declarou Labuzov. “A Rússia não faz diferença entre soldados e civis. A maioria foi retirada de territórios que Moscou diz ter ‘libertado’, mas o tratamento é o mesmo.”

Segundo ele, nas regiões ocupadas pelas forças russas, recusar a cidadania imposta significa perder todos os direitos, inclusive o de circular pelas ruas. “Se você não aceita, ou pior, resiste, a cidade é destruída”, disse.

Labuzov afirmou ter testemunhado esse padrão de aniquilação em Mariupol, onde foi capturado, e também em outras localidades como Bakhmut, Avdiivka e Soledar. “Vi civis sendo mortos, vi a destruição da infraestrutura urbana. Só restaram ruínas.”

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