Como o ataque terrorista em Moscou expõe a farsa do ‘Teatro de Segurança’ da Rússia

Artigo expõe as fragilidades russas e afirma que o país é um alvo fácil para extremistas, como ficou claro no ataque do EI-K

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do jornal The Moscow Times

Por Jeremy Morris

Realizar o pior ataque terrorista em Moscou em 20 anos parecia surpreendentemente fácil, apesar de a capital russa ser uma das cidades mais vigiadas e guardadas do mundo. Os atendentes do detector de metais no Crocus City Hall não tiveram chance contra homens com armas automáticas dispostos a abrir fogo imediatamente conforme se aproximavam do prédio. A ideia de que a polícia, que por acaso estava presente, poderia ter confrontado os terroristas como em um filme de ação é matéria de fantasia.

No entanto, o ataque sublinha o quão ridícula é a visível presença de segurança de Moscou. A mais securitizada de todas as grandes cidades da Europa, Moscou está provavelmente mais vulnerável do que nunca ao terrorismo, como os acontecimentos de sexta mostraram claramente. Se abrirmos a cortina do teatro de segurança da Rússia, onde uma aparência superficial de força não mantém as pessoas seguras, podemos ver o porquê. 

Desde os numerosos ataques terroristas mortais durante as guerras chechenas, os russos se habituaram a ver guardas uniformizados com detectores de metais nas entradas dos centros de transportes, grandes locais como o Crocus City Hall e até pequenas estações de metrô. Normalmente, você precisa passar por um arco de detector e a equipe fará a varredura em sua bolsa. Mas colocar policiais e seguranças em todo o lado dessensibiliza completamente o público e leva à total indiferença e tédio por parte do pessoal de segurança.

Se você tem seguranças para tudo, isso significa que eles são desprofissionalizados. Na verdade, algumas das pessoas menos capazes para tal serviço (inclusive idosos e deficientes) e menos instruídas na sociedade se tornam agentes de segurança mal remunerados. A maneira como eles agitam uma varinha detectora em direção às pessoas, de forma aleatória, sem prestar atenção, reflete uma cultura na qual eles realizarão sua única tarefa sem fazer qualquer outra coisa que não tenham sido especificamente ordenados a fazer.

Mas isso não é tudo. A falta de formação e motivação, juntamente com os baixos salários e o tédio, significa que, na maioria das vezes, as vistorias e verificações de segurança sequer revelam transgressões genuínas.

Agentes da polícia de Moscou interrompem protesto em dezembro de 2011 (Foto: CEA+/Flickr)

Curiosamente, comportamentos que demonstram isso aparecem com frequência deprimente. Já testemunhei pessoas portando armas de fogo em aviões e outras passando direto pelos guardas em zonas de aeroportos supostamente seguras. Já vi pessoas passarem por porteiros adormecidos para entrar em condomínios fechados de ricos e poderosos, já vi usarem uma boa lábia junto a agentes de segurança que guardam locais sensíveis, seduzindo-os apenas por estarem bem vestidos. Ou, no caso das mulheres, vestidas de forma reveladora. As pessoas até atravessam fronteiras internacionais simplesmente entregando alguns dólares às pessoas certas e esperando até que haja uma oportunidade.

Por outro lado, pode ser negada a entrada em seu próprio evento organizado porque você não tem o pedaço de papel certo. Recentemente, não pude sair de um prédio seguro em Moscou porque meu token magnético não foi registrado na catraca. O guarda que manejava a máquina me viu deixar cair o token no portão, mas não conseguiu usar a sua iniciativa para me deixar passar. Repetidamente, as saídas de emergência acabam bloqueadas ou trancadas com o argumento de que as pessoas as usariam para evitar filas. 

Uma vez, no aeroporto, me perguntaram o que eu tinha na minha maleta. “Nada além de um computador”, respondi, e fui liberado. Preciso continuar?

Com dezenas de guardas na entrada de um aeroporto internacional, todos presumem que alguém notará uma ameaça potencial. Sem mencionar o efeito notoriamente contraproducente de forçar as pessoas a fazer fila para passar pelos portões de segurança, o que muitas vezes cria enormes concentrações de pessoas vulneráveis ​​a ataques enquanto esperam para passar pela segurança em aeroportos e estações ferroviárias. 

A Rússia sofre de uma falta de consciência pública sobre segurança e de uma cultura de que isso nem sequer é da conta das pessoas comuns. Eu morava em Moscou em 1999, quando ocorreram os atentados a bomba em apartamentos, e durante a década de 2000, quando ocorreram muitos ataques em locais públicos em Moscou e São Petersburgo. 

Como alguém que cresceu na Grã-Bretanha num período em que o Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês) levou a cabo repetidos ataques terroristas, sempre fiquei impressionado com a forma como o público em geral na Rússia ignora a realidade quando estão presentes riscos óbvios. Era como se as pessoas estivessem tentando ignorar tudo o que podiam, cuidando da própria vida. 

Já me deparei com ônibus cheios de passageiros ignorando uma mala abandonada sem vigilância. Questionadas, as pessoas não tinham ideia de por que alguém estaria preocupado com o que poderia estar dentro. Também existe uma cultura de confiar bagagens a terceiros em viagens de longa distância. Ainda vejo pessoas aceitando bagagens de estranhos em aeroportos internacionais – o cúmulo da ingenuidade. 

Depois, há a polícia. Em cidades pequenas e outros locais, os agentes locais podem ter uma boa ideia do que se passa e até ser eficazes na detecção de crimes. Mas, nas grandes cidades, a ameaça à ordem pública significa patrulhar os espaços públicos. Isto leva aos mesmos problemas: tédio, dessensibilização e concentração em alvos fáceis, como moradores de ruas e ambulantes. Além da prática de traçar perfis raciais de motoristas de táxi para extorqui-los.

O patrulheiro de ruas não é muito mais que um segurança glorificado, exceto que ele é pior porque pode agredir pessoas impunemente e pode muito bem ter uma relação patrão-cliente com o delegado, o que significa que ele tem que pagar dinheiro de extorsão como tributo. 

Os assim conhecidos “ministérios de segurança” exemplificam mais que qualquer outro lugar o conceito russo de “Eu sou o chefe e isso significa que você é um idiota.” Este ditado expressa como um subordinado nunca deve tomar iniciativa e sempre deve permanecer vigilantemente passivo dentro de sua hierarquia. Nunca devem questionar as ordens que lhes foram dadas, nem mesmo pedir esclarecimentos. Assim como a corrupção paga para cima, as consequências descem ladeira abaixo, de modo que ninguém quer piorar a situação sendo um espertinho. 

Liderança significa manter a distância e a impunidade. A cultura da autoridade significa que a pessoa com maior responsabilidade procura evitar qualquer um desses deveres através da delegação de atribuições, da forma menos profissional e mais inútil possível. Ela consegue se proteger e voltar ao que realmente é seu trabalho: evitar o tédio e encontrar maneiras de ganhar dinheiro. 

Tomar a iniciativa, o que compreende responder, chamar a atenção para um problema e sugerir um curso de ação, é socializado pelos subordinados nos estágios iniciais de sua carreira. Isso também funciona no nível das unidades organizacionais. Assim como durante a lenta resposta ao motim liderado pelo agora falecido líder do Wagner Group, Evgeny Prigozhin, pode-se facilmente imaginar a única agência de segurança local do Crocus City Hall (alvo do ataque terrorista de sexta) parada, presumindo que responder era trabalho da polícia, e não considerando digno o ato de coordenar ou mesmo comunicar de forma eficaz o que ocorrera.

Nunca se deve subestimar o sentimento de direito e superioridade entre os elementos dos serviços de segurança. Afinal, a generosidade do Estado transformou-os numa casta intocável. Mesmo na grande mídia, encontramos indícios de que eles são apenas uma corporação comercial ilícita em concorrência com outras agências. 

O teatro de segurança da Rússia deve ser colocado na sua perspectiva sociológica. As agências e a polícia seguem a mesma lógica ditada pelo sistema mais amplo: cuide de si mesmo e tome cuidado (especialmente materialmente), ninguém é responsável pelos outros (a menos que queiramos usá-los como bodes expiatórios), fique quieto e não coopere com os “outros” (não cooperam nem mesmo com agências irmãs). A responsabilidade coletiva interna é tudo. 

Graças a Deus pelos verdadeiros heróis, espectadores comuns que vão ajudar os necessitados e cidadãos com espírito cívico dispostos a ar o sangue sangue. Um exemplo da capacidade, esta distante do estado disfuncional e incoerente, que as pessoas têm de assumir responsabilidades e pensar em si mesmas como membros da sociedade.

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