Por André Amaral
Se há algo absolutamente desaconselhável na Rússia é se opor ao presidente Vladimir Putin. É quase como assinar a própria sentença de morte em três vias e aguardar um desfecho trágico marcado por circunstâncias misteriosas, como “dar um passo em falso” em uma escadaria, despencar de uma janela, cair no mar ou até mesmo dos céus. A chamada “síndrome da morte súbita russa” já abreviou a vida de inúmeras pessoas que tiveram a audácia de discordar do chefe do Kremlin.
O mais recente é Alexei Navalny, ferrenho rival político, morto nesta sexta-feira (16). Mas a lista de desafetos que tomaram chá de sumiço – ou de veneno – é grande e já vem de longa data. Entre os principais estão Evgeny Prigozhin, chefe do Wagner Group, Pyotr Kucherenko, vice-ministro da Ciência e Educação Superior, o magnata do setor de criptomoedas Vyacheslav Taran, o ex-espião russo Alexander Litvinenko, o empresário Pavel Antov, e Boris Berezovsky, um oligarca russo que ajudou Putin a atingir o poder.
Esses nomes, em algum momento, foram contrários à guerra na Ucrânia, denunciaram a corrupção no longevo governo Putin ou lideraram a oposição.
Nada de novo no front, considerando a ascensão ao poder de Putin desde o final dos anos 1990, caracterizada por violência e autoritarismo. Isso inclui perseguição a opositores políticos, inclusive com suspeitas de envenenamento, censura e repressão à imprensa e a ativistas contrários ao regime. E muitas, muitas mortes.
Nessa conta entram a guerra devastadora na região do Cáucaso, ações fatais de suas forças especiais que resultaram em baixas civis, a queda suspeita de um avião comercial e, em 2022, a invasão à Ucrânia que colocou o mundo em alerta.
Além disso, Putin teve um ano intenso em 2023, quando eliminou novos rivais, calou os críticos que restavam e pavimentou caminho para a reeleição, o que deve ocorrer neste ano, já que não tem oposição.
Réquiem
A Referência relembra abaixo alguns indivíduos poderosos e não alinhados com o Kremlin que perderam suas vidas de forma misteriosa. Os multimilionários mortos tinham em comum o fato de terem trabalhado em setores cruciais da economia da Rússia, como o de energia, infraestrutura e aviação.
Evgeny Prigozhin, chefe do Wagner Group, morreu na misteriosa queda de um avião no dia 23 de agosto. A rebelião liderada por ele à frente dos mercenários de sua empresa militar privada, que em junho marchou rumo a Moscou e colocou até a sobrevivência política de Putin em risco, aumentou as apostas de que ele sairia de circulação em breve. Dito e feito.
Pyotr Kucherenko, vice-ministro da Ciência e Educação Superior, morreu no dia 20 de maio após adoecer no avião quando retornava de uma viagem a Cuba. Embora a própria família tenha sugerido um problema cardíaco como possível causa, um episódio paralelo tornou a morte suspeita. Roman Super, um jornalista que deixou a Rússia pouco após o início do conflito, disse em seu canal do Telegram que Kucherenko temia por sua segurança. Kucherenko era um crítico velado a Putin e à guerra contra a Ucrânia.
Pavel Antov, empresário russo, caiu de uma janela de hotel na Índia em 25 de dezembro de 2022, pouco após celebrar seu aniversário, dois dias após a morte de um de seus companheiros de viagem no mesmo local. Nas palavras da jornalista norte-americana Elaine Godfrey, Antov “teria expressado uma perigosa falta de entusiasmo pela guerra de Vladimir Putin contra a Ucrânia“.
Alexander Litvinenko, ex-agente da KGB, morreu três semanas após beber uma xícara de chá em um hotel de Londres em 2006. A bebida continha polônio-210, uma substância fatal que demorou 22 dias para matá-lo. Antes de morrer, ele teve tempo de garantir à policia que uma morte como a dele só podia ter sido ordenada por uma pessoa: Vladimir Putin.
Vyacheslav Taran, fundador do Forex Club e presidente do Libertex Group, morreu na queda do seu helicóptero em 25 de novembro, na Riviera Francesa, em um dia de boa visibilidade e de clima agradável. Outro passageiro cancelou abruptamente a presença no voo antes do embarque, o que levou a especulações e teorias da conspiração sobre a morte, incluindo alegações de que Taran era um espião do Kremlin. A família negou as alegações.
Ivan Pechorin, gestor da Corporação para o Desenvolvimento do Extremo Oriente e do Ártico (KRDV, na sigla em russo), teria caído de uma lancha no Mar do Japão, perto da cidade russa de Vladivostok. O corpo do empresário, associado a Putin por conta do seu trabalho na modernização da aviação no leste da Rússia, foi encontrado no 12 de setembro, de acordo com comunicado emitido pela própria empresa na qual ele trabalhava.
Ravil Maganov, presidente do conselho da maior empresa privada de petróleo russa, a LUKoil, morreu no dia 1º de setembro após supostamente cair da janela do sexto andar do Hospital Clínico Central, segundo fontes policiais. Entretanto, em nota, a empresa disse que ele foi vitimado por “uma doença grave”. Mais informações divergentes surgiram em diversos veículos de mídia russos após a morte de Maganov. O jornal de negócios Kommersant informou que ele havia sido diagnosticado com uma doença cardiovascular grave, enquanto a agência de notícias Mash disse que ele sofria de depressão. Já a agência estatal Tass citou a hipótese de suicídio.
Boris Berezovsky foi um oligarca russo que ajudou Putin a atingir o poder, mas que se desentendeu com o líder russo posteriormente e passou a ser crítico feroz do regime. Empresário e político, ele se beneficiou do período de liberalização econômica pós-soviético. Chegou a ser um dos homens mais ricos da Rússia, mas o mal-estar com o sucessor de Yeltsin o obrigou a fugir para a Inglaterra. Beresovsky foi vítima de várias tentativas de assassinato, mas nunca se calou. Mesmo no exílio, continuou a atacar Putin e alguns dos parceiros do presidente, como Roman Abramovich, dono do clube de futebol inglês Chelsea. Em 2013, aos 67 anos, ele foi encontrado morto em sua casa no condado de Surrey, nos arredores de Londres.
Boris Nemtsov, político em ascensão e crítico de Putin, foi baleado perto do Kremlin em 2015, um ano após manifestar forte oposição à presença russa em Donbass.
Outros nomes
A ativista de direitos humanos Natália Estemirova também foi morta a tiros, em 2009, assim como a jornalista Ana Politkovskaya, assassinada em 2006. O líder do partido anti-Kremlin Rússia Liberal Sergei Yushenkov foi assassinado da mesma maneira em 2003.
Já Leonid Shulman e Alexander Tyulakov foram encontrados mortos com notas de suicídio no início de 2022. Depois, no período de um mês, mais três executivos russos, Vasily Melnikov, Vladislav Avayev e Sergey Protosenya, igualmente morreram em aparentes “suicídios”.
Um caso que atraiu atenção global, em maio de 2022, foi o de Andrei Krukovsky, proprietário de um resort em Sochi cujo corpo foi localizado no sopé de um penhasco. Uma semana depois, Aleksandr Subbotin, gerente de uma empresa de gás russa, morreu na casa de um xamã de Moscou, após ter sido supostamente intoxicado com veneno de sapo.
Há mais casos ligados. Yuri Voronov, encontrado boiando em sua piscina no subúrbio de São Petersburgo com um ferimento de bala na cabeça em julho de 2022. Dan Rapoport, crítico de Putin nascido na Letônia, que aparentemente caiu da janela de seu apartamento em Washington, a um quilômetro e meio da Casa Branca. E diretor de TI Grigory Kochenov, que caiu de uma sacada.
Alvo potencial
E já existe um candidato a se juntar aos demais. Igor “Strelkov” Girkin cometeu o mesmo pecado de Navalny e Prigozhin: rivalizou com Putin. O nacionalista foi um importante comandante das forças separatistas pró-Moscou que lutaram pela independência de Donetsk em 2014, mas virou-se contra o governo russo quando passou a classificar como “muito gentil” a estratégia do país na guerra da Ucrânia.
Conforme as críticas aumentavam, a ponto de chamar Putin de “crápula”, segundo o site Observador, Strelkov entrou na lista de alvos do governo russo e acabou preso em julho de 2023 por “extremismo”. Bastante popular entre seus seguidores e especialmente influente no meio militar, com suas postagens no Telegram, resolveu apostar ainda mais alto e se lançou extraoficialmente como candidato à presidência.
Como Navalny, Strelkov não dá sinais de que se calará, o que faz dele um forte candidato a ter o mesmo destino que os muitos críticos de Putin neutralizados.