Rússia amplia repressão e registra aumento histórico em casos de alta traição

Justiça russa passou classificar como 'alta traição' inclusive tentativas de fugir do país ou de transferir muito dinheiro para o exterior

O ano de 2023 marcou um aumento significativo no número de julgamentos por alta traição na Rússia. Até agora, os tribunais do país já processaram 70 casos do gênero, 37 deles julgados. Os números foram revelados na quinta-feira (21) pelo projeto de direitos humanos Primeiro Departamento, que ainda identificou outros episódios não registrados, o que leva o total para aproximadamente uma centena.

De acordo com relatório publicado pela entidade, a questão está diretamente relacionada à guerra com a Ucrânia e à forma como muitos russos têm reagido a ela, levando o governo a intensificar a repressão. Diante da insatisfação popular, o Judiciário apertou o cerco e tornou-se menos tolerante com ações que em outros tempos eram corriqueiras e não configurariam crime.

“O ‘limite da sensibilidade’ das forças de segurança está diminuindo rapidamente. A divulgação de notícias da Ucrânia, a transferência de várias centenas de rublos ou o desejo de deixar o país começaram a ser reconhecidos como alta traição”, disse o advogado do Primeiro Departamento Evgeny Smirnov.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin: russos em fuga devido à guerra (Foto: Wikimedia Commons)

O levantamento aponta 63 processos por alta traição levados aos tribunais neste ano, 33 deles já julgados. Os outros sete casos, quatro julgados, foram enquadrados em um artigo diferente, porém equivalente, do Código Penal russo: “Cooperação numa base confidencial com Estado estrangeiro, organização internacional ou estrangeira”, inserido na lei somente no ano passado.

Estes, no entanto, são apenas os casos registrados oficialmente pelos tribunais russos. Investigação conduzida pelo Primeiro Departamento mostra muitos outros pendentes, levando o total para 98. E é possível que existam ainda mais, considerando o sigilo que vem sendo adotado principalmente em processos militares.

“Acredito que houve mais de cem casos de traição apresentados neste ano, e o número continua aumentando”, afirmou Smirnov.

Insatisfação popular

Não por acaso, a cidade campeã de casos foi Rostov-on-Don, no sul do país, com nove processos por traição abertos, três deles já julgados. Foi lá que o Wagner Group deu uma de suas mais importantes cartadas durante o motim de 23 de junho.

Foi após assumirem o controle de Rostov-on-Don que os mercenários iniciaram a marcha rumo a Moscou, interrompida somente graças a um acordo medida pelo presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, um importante aliado do homólogo russo Vladimir Putin.

Em julho deste ano, em artigo para o think tank Foreign Policy Research Institute, o analista Colin P. Clarke afirmou que os combatentes do Wagner Group tiveram “boas-vindas de heróis” na cidade, um importante foco de insatisfação com o governo.

“Os russos locais trouxeram comida e água para os combatentes e entoaram o nome do Wagner, indiscutivelmente a marca mercenária mais reconhecida do mundo, uma fonte de orgulho para muitos nacionalistas russos”, diz Clarke na publicação.

Críticas à guerra

Um figura conhecida que foi julgada e condenada por traição é o jornalista Vladimir Kara-Murza, sentenciado a 25 anos de prisão no início deste ano como parte dos esforços do governo russo para reprimir a dissidência. Em julgamento a portas fechadas, ele foi considerado culpado por disseminar “informações falsas” sobre o exército russo e por ter conexões com uma “organização indesejável.”

Kara-Murza é um jornalista e ativista da oposição que possui cidadania russa e britânica. Ele sobreviveu a dois envenenamentos, em 2015 e 2017, que ele acredita terem sido realizados pelo Kremlin, embora as autoridades russas neguem envolvimento. Ele também era um colaborador próximo do líder da oposição Boris Nemtsov, assassinado em Moscou em 2015.

Para aqueles julgados e condenados neste ano, caso do jornalista, a situação é consideravelmente mais difícil porque a pena prevista em lei aumentou bastante. Antes, o limite era de 20 anos de prisão, mas desde abril os réus acusados de traição podem ser sentenciados até à prisão perpétua.

E, segundo projeção de Dmitry Zair-Bek, chefe do Primeiro Departamento, a situação não vai melhorar em 2024. “Definitivamente haverá mais vereditos em casos de traição no próximo ano”, disse ele.

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