por Anna Rangel
Depois de um ano marcado por uma grave retração dos fluxos de comércio, pessoas, informações e investimentos, o prognóstico para 2021 é de ligeiro otimismo para a globalização em todo o mundo. Essa é a principal conclusão do especialista Steven A. Altman, da Universidade de Nova York, e um dos autores do Índice de Conexão Global, estudo anual da empresa de logística germano-americana DHL.
A boa notícia é que a pandemia do novo coronavírus não deve representar um retrocesso superior ao causado pela crise de 2008 – o maior golpe à economia global em décadas até então. E, mesmo em meio ao caos pandêmico, houve avanços na globalização.
A RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente), que reúne países do Sudeste Asiático, China, Austrália, Nova Zelândia e Japão, foi assinada em novembro de 2020 e tem como objetivo facilitar o comércio entre os membros, que representam quase 1/3 do PIB (Produto Interno Bruto) global.
Na África, a promessa é o AfCFTA (Acordo de Livre Comércio Continental Africano), que entrou em vigor em janeiro deste ano, para liberalizar o comércio e o trânsito de pessoas entre os países do continente. Na América do Norte, começou a valer em julho de 2020 o USMCA (Acordo México-EUA-Canadá), que substituiu o Nafta, tratativa de liberalização entre os três países assinada em 1994.
As pessoas também veem com bons olhos uma maior cooperação entre as nações mesmo no auge da pandemia, segundo uma pesquisa da Pew Research Center cujos dados foram coletados em meados de 2020. Para 81% dos 14 mil entrevistados, “as nações em todo o mundo deveriam agir como parte de uma comunidade global que trabalha unida para resolver problemas”.
O problema é que conciliar interesses de nações distintas é difícil: basta observar o baixo nível de cooperação multinacional durante a pandemia, observa Renato Flores, professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas). “Essa tendência de foco no Estado-nação vai continuar. Vamos ter um mundo mais egoísta, menos cooperativo, e com os organismos internacionais tendo um protagonismo muito menor”, afirma.
Para Flores, o mundo dos próximos anos não será exatamente bipolar, mas será dominado pela disputa entre EUA e China. Neste contexto, o que vem por aí serão as “alianças flutuantes”. “Você terá potências como Índia, Brasil, Turquia, Alemanha e França, por exemplo, tentando extrair o melhor dos dois mundos, todas com alianças conforme o interesse em pauta”.
Linhas de produção globais
Depois de um início de ano difícil em 2020, os fluxos de comércio, capital e informação dão forte sinais de recuperação. O fluxo comercial entre as nações , por exemplo, teve três meses de intensa retração, que chegou a 15% em abril e maio de 2020. Em novembro, porém, já havia retomado seu nível pré-pandemia.
Entre as áreas mais beneficiadas estão produtos médicos e de saúde e equipamentos eletrônicos pessoais, usados por quem passou a trabalhar em casa. Com o isolamento social, parte dos recursos das famílias foi usado em novos produtos – muitos deles importados –, substituindo parte do gasto com restaurantes, viagens e passeios.
No âmbito comercial, a principal conclusão do estudo é que a cadeia logística global continuará forte, a despeito de temores do início da pandemia. Empresas têm abandonado seus planos de focar a produção nacional, já que para muitos setores isso representa um aumento de custos.
Isso porque, na avaliação de Flores, da FGV as cadeias de valor internacionais em todos os setores já estão altamente interconectadas. “Você terá reacomodações, como na produção para a área de saúde, ou de produtos de baixo valor adicionado. Mas uma mudança geral nas cadeias de valor é muito difícil”, diz.
Em vez disso, a opção tem sido por investimentos em uma linha de produção mais eficiente, mesmo que fora do país, combinados a novas tecnologias de logística e inventário. As empresas também estão de olho em questões geopolíticas, custos de produção em diferentes países e melhorias na automação das plantas fabris.
“Minha maior preocupação é a geopolítica. Isso porque, de um ponto de vista econômico, a globalização tem o potencial de acelerar a retomada da pandemia, enquanto novas barreiras para fluxos internacionais criariam novos ventos contrários à macroeconomia global”, afirma Steven Altman, professor da Escola de Negócios Stern, da Universidade de Nova York, em conversa com A Referência.
O caminho do investimento
O golpe causado pela pandemia representou um retrocesso do investimento global para níveis registrados nos anos 1990. Mas esse fluxo ensaia uma tímida retomada em 2021 após uma retração de 42% no ano anterior – mesmo após algumas operações de fusões e aquisições de grande porte nos últimos meses de 2020.
A diferença é que, no pós-pandemia, parte desses investimentos também será feita considerando questões de segurança nacional e de geopolítica, além das tradicionais métricas da globalização, de expansão de mercados ou acesso a recursos naturais em outras partes do mundo.
Neste ano, a recuperação dependerá ainda da vacinação e do fim da “incerteza macroeconômica induzida pela pandemia, pelos lockdowns e pelas restrições de viagem”, como definiram os autores do estudo em artigo à revista norte-americana “Harvard Business Review“.
“A geopolítica da vacina deve reafirmar China, Estados Unidos, Israel, Índia, Rússia e União Europeia como principais atores globais. Esse domínio permite que as atividades econômicas se normalizem mais rápido, o que deve alterar fluxos de investimentos que antes se direcionariam para mercados emergentes“, afirma Marília Pimenta, Coordenadora do curso de Relações Internacionais e da pós em Negócios Internacionais e Comércio Exterior da FECAP (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado).
Sociedade da informação
Já o fluxo da informação tem um caminho ainda incerto. Houve uma alta de 48% no uso da internet e 20% nas ligações telefônicas entre a metade de 2019 e a metade de 2020, além de uma escalada de 53% no comércio eletrônico internacional de bens no segundo trimestre do ano passado. Mas aumentos não devem continuar uma vez que as pessoas possam sair de casa de novo.
A estimativa dos autores do estudo é que haverá uma ligeira queda em relação aos picos registrados durante o isolamento social mais rígido. Porém, duas tendências de globalização devem permanecer no mercado: um forte impulso do varejo eletrônico e um comércio cada vez mais global de serviços.
Durante a pandemia, muita gente percebeu que pode contratar alguém do outro lado do mundo sem prejuízo, o que deve garantir um aumento nas contratações em outros países, de forma remota, permitindo às empresas um inédito ganho de eficiência graças a um “pool” de talentos cada vez mais descentralizado.
O ecommerce também deve ganhar uma nova tração no pós-pandemia, aproveitando a mesma tendência de descentralização e globalização de sua base de clientes. A mudança abrirá espaço para que empresas de menor porte tornem-se globais, e deve levar as gigantes de cada setor a observar com cuidado novos entrantes em seus setores.
Também caracteriza a sociedade da globalização o fluxo internacional facilitado de pessoas, mas este não deve ver retomada até pelo menos 2023, segundo o estudo. No ano da pandemia, a diminuição no trânsito de turistas de lazer e negócios foi de 74%. Embora as viagens de negócios representem apenas 13% das partidas em todo o mundo, espera-se aumento apenas com a retomada de conferências e eventos, depois que a pandemia estiver sob controle.
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) projeta recuperação do PIB (Produto Interno Bruto) global para níveis pré-pandemia a partir da metade deste ano. Mas, para Altman, a recuperação será desigual. “O curso desnivelado da pandemia em todo o mundo – e suas consequências macroeconômicas – bagunçam a recuperação. E ainda estamos em meio a níveis muito altos de incerteza. Estou otimista, mas cauteloso em relação aos elevados riscos que permanecerão daqui para frente”, resume.