Hospital de Cabul coloca lado a lado militares afegãos e seus inimigos talibãs

Centro de recuperação recebe tanto militares quanto talibãs feridos durante a guerra, e mesmo as mulheres seguem na ativa no estabelecimento

Afundado em uma profunda crise econômica, o Afeganistão é extremamente dependente de ajuda humanitária. A situação atinge também o sistema de saúde, no qual a Cruz Vermelha é a melhor opção para muitas vítimas da guerra. Isso vale tanto para soldados das forças de segurança nacional quanto para seus inimigos, os combatentes talibãs. É essa encruzilhada que tem colocado militares e extremistas lado a lado em um hospital de Cabul, segundo reportagem da agência Reuters.

“Durante anos lutamos contra os infiéis e os derrotamos, e eu fiquei ferido”, diz o talibã Mohammad Ishaq, que perdeu a perna durante a guerra e atualmente faz fisioterapia para usar sua nova prótese. Isso no mesmo setor onde se recupera um dos muitos soldados que ele enfrentou em combate. “Eles ajudam todas as pessoas necessitadas; eles fornecem tudo o que as pessoas precisam”, afirma o jihadista.

Hospital de Cabul coloca lado a lado militares afegãos e seus inimigos talibãs
Combatentes do Taleban depois de se entregarem a forças de segurança afegãs, em 2010 (Foto: Aslan Media/Flickr)

O centro de reabilitação de Cabul é um dos sete postos de atendimento que a Cruz Vermelha tem no Afeganistão. Ele atende tanto pessoas com deficiências naturais quanto os feridos de guerra. E opera normalmente desde a tomada de poder pelo Taleban, em 15 de agosto.

Segundo o fisioterapeuta italiano Alberto Cairo, chefe do programa ortopédico Cruz Vermelha, a presença de extremistas na reabilitação aumentou bastante desde a ascensão dos jihadistas. “Havia talibãs vindo para cá, mas muito poucos e secretamente. Agora, eles vêm muito abertamente, então temos muitos, todos os dias, entre dez e 15 talibãs vêm por motivos diferentes”, diz.

E Cairo ressalta que não existe nenhuma diferenciação em relação ao tratamento dispensado aos violentos extremistas. “Nós os ajudamos como ajudamos a todos”, afirma o italiano, que tem três décadas de experiência no Afeganistão.

No hospital, as mulheres também têm espaço, mesmo após o Taleban ter forçado a maioria a abandonar seus postos de trabalho no país. “Não houve mudanças em relação a como trabalhávamos antes, está tudo normal”, diz Malalai, uma fisioterapeuta que trabalha no centro há dez anos e atende talibãs diariamente. “Assim como os pacientes vinham antes, eles vêm agora”.

Mohammad Tawfiq, um ex-militar da província de Panjshir, no norte do país, perdeu os movimentos da cintura para baixo após uma emboscada do Taleban na qual foi o v entre três homens. Ele passou os últimos três anos na cama, e o mesmo com o tratamento ainda precisa de apoio para erguer o tronco.

Segundo ele, o centro de reabilitação de fato permite a aproximação entre os inimigos. Mas ainda assim é difícil ignorar as diferenças ideológicas. “A luta acabou para mim, minha luta acabou. Quero viver em um ambiente pacífico. Posso falar com qualquer pessoa agora”, disse ele. “Mas não acho que eles devam governar por muito tempo”.

Por que isso importa?

Desde que assumiu o poder, no dia 15 de agosto, o Taleban busca reconhecimento internacional como governo de fato do que chama de “Emirado Islâmico“. O grupo extremista chegou a se reunir com autoridades da ONU (Organização das Nações Unidas) a fim de garantir que a assistência humanitária seja mantida no país.

No começo desta semana, os talibãs também autorizaram o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) a retomarem a campanha nacional de vacinação em domicílio contra a pólio no país.  A ONU, por outro lado, recusou o pedido para que um enviado talibã discursasse na Assembleia Geral do órgão.

Representantes do Reino Unido também receberam autoridades talibãs, e na ocasião pressionaram para que cidadãos britânicos fossem autorizados a deixar o Afeganistão, além de questionarem sobre os direitos das mulheres. Rússia, Irã, China, Uzbequistão, Turcomenistão e Paquistão estão entre as nações que mantém contato mais próximo com os novos governantes afegãos.

Até agora, porém, nenhuma nação reconheceu formalmente o Taleban como poder legítimo no país. Mais do que legitimar o poder talibã internacionalmente, esse reconhecimento é crucial para fortalecer financeiramente um país pobre e sem perspectivas imediatas de gerar riqueza. Inclusive, os Estados Unidos, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) cortaram o acesso de Cabul a mais de US$ 9,5 bilhões em empréstimos, fundos e ativos.

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