Mudança climática contribui para a crise afegã e tende a alimentar o extremismo

Num país em que 85% da população depende da agricultura para sobreviver, estiagem transformou a busca por comida em um desafio diário

Entre as 38 milhões de pessoas que vivem no Afeganistão atualmente, cerca de 22,8 milhões enfrentam insegurança alimentar, de acordo com dados da ONU (Organização das Nações Unidas). Um dos principais fatores causadores da crise alimentar é a estiagem, resultado direto das mudanças climáticas globais. Num país em que 85% da população depende da agricultura para sobreviver, a situação é catastrófica, e os climatologistas sugerem que a natureza não apresentará uma solução no curto prazo.

A precipitação no Afeganistão é inconstante e diminuiu cerca de 40% nos últimos anos, com os padrões de chuva apresentando frequente alteração. O país, que em sua maior parte é seco e quente quase o ano todo, ainda precisa se preparar para o possível agravamento da seca nos próximos anos, de acordo com especialistas. Para piorar, os breves períodos de chuvas mais fortes devem ocorrer durante a primavera, quando o solo é menos capaz de absorver a água.

Segundo Richard Trenchard, representante da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) no Afeganistão, a crise humanitária do país é “sem dúvida nenhuma, a pior do mundo”. Ele afirma que os sistemas de subsistência agrícolas estão à beira do colapso e concorda que a tendência é a situação piorar nos próximos meses.

Também pesa a falta de infraestrutura, uma herança do governo afegão anterior à tomada de poder pelo Taleban. Há alguns anos, quando chuvas torrenciais atingiram determinadas regiões, não havia um sistema adequado para armazenar a água a fim de utilizá-la posteriormente durante a estiagem. Também não havia estrutura para represar a água e proteger as edificações, o que levou ao alagamento de muitas casas e deu grande prejuízo a muitos afegãos.

Centro de distribuição de comida do Programa Mundial de Alimentos no Afeganistão (Foto: Sayed Bidel/Unicef)

Deslocamentos

Atualmente, o povo do Afeganistão tem duas alternativas para enfrentar a seca e a fome. Uma delas é esperar pela ajuda humanitária, ainda insuficiente para o tamanho do problema. A ONU (Organização das Nações Unidas) calcula que são necessários US$ 115 milhões para oferecer ajuda a 5 milhões de afegãos neste inverno e na próxima primavera. No total, o pacote de resposta humanitária projetado para 2022 é de US$ 200 milhões.

Àqueles que não têm aceso a ajuda humanitária, a outra opção é deixar as suas casas rumo a regiões com melhores condições. É essa a situação do agricultor Qudratullah, de 58 anos, que abandonou a fazenda no norte do país onde mantinha uma criação de gado e plantações que sustentavam uma família de 18 pessoas.

“Devido à seca, tivemos que deixar nossa fazenda. Não tínhamos outra renda”, disse ele à Radio Free Europe. “Nosso campo tornou-se estéril, e as safras que havíamos plantado foram destruídas. Não tínhamos água e nada para comer. Não sobrou nada do meu gado. Eu tive que vender tudo. Mesmo que tivessem sobrado uma ou duas cabeças, não teria como manter, de tão ruim que é a situação”.

Existem atualmente 2,6 milhões de refugiados afegãos no mundo todo, 2,2 milhões apenas no Irã e no Paquistão. Há ainda 3,5 milhões de pessoas deslocadas internamente, em busca de refúgio dentro do próprio país para fugir da miséria ou da violência, de acordo com a Acnur, agência da ONU para refugiados.

Segurança global

Samantha Mort, que atua no Afeganistão pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), destaca uma contribuição importante do Taleban para o drama afegão. “Muitas mulheres foram convidadas a ficar em casa desde 15 de agosto, e muitas famílias perderam sua principal fonte de renda”, afirma, referindo-se à proibição do trabalho feminino imposta pelos talibãs desde o dia em que chegaram ao poder.

As crianças, segundo Mort, são particularmente atingidas pela crise, e a evasão escolar tende a aumentar no país. O que abre espaço para um problema global: o extremismo. “Se as crianças não estão na escola, é muito mais provável que sejam recrutadas por um grupo armado, se casem prematuramente ou sejam exploradas de alguma forma”.

Deborah Lyons, representante especial da ONU no Afeganistão, reforça essa posição. E culpa parcialmente as nações mais ricas, sobretudo os Estados Unidos, devido às sanções financeiras que “paralisaram o sistema bancário, afetando todos os aspectos da economia” afegã. Mesmo situações corriqueiras ficam prejudicadas, como o pagamento de profissionais de saúde e de equipes em programas de alimentação.

“A paralisia do setor bancário empurrará cada vez mais o sistema financeiro para trocas de dinheiro informais não contabilizadas e não regulamentadas”, diz ela, destacando que tal situação acaba por facilitar o terrorismo e outros crimes, como o tráfico de pessoas e de drogas.

Como exemplo, Lyons cita a dificuldade encontrada pelo Taleban para enfrentar o Estado Islâmico-Khorasan (EI-K), seu principal inimigo doméstico. O número de ataques atribuídos ao grupo extremista aumentou significativamente, de 60 no ano passado para 334 neste ano, segundo ela, que faz um alerta: “A realidade da situação no Afeganistão atual tende a aumentar o risco de extremismo”.

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