Novo oásis do futebol, Arábia Saudita é uma das nações líderes em abusos dos direitos humanos

País usa craques da bola em campanha para sediar a Copa do Mundo e amplia debate sobre as atrocidades atribuídas a seu governo

No dia 12 de março de 2022, a Arábia Saudita executou 81 pessoas em 24 horas, muitas acusadas de crimes ligados ao que a lei local define como “terrorismo”. A chocante marca colocou o país entre os três que mais vezes aplicaram a pena de morte no ano passado, atrás somente de China e Irã, que sequer divulgam dados oficiais a respeito. Alvo de frequentes críticas por parte de entidades humanitárias e inclusive da ONU (Organização das Nações Unidas), Riad tem na questão dos direitos humanos o maior obstáculo em busca de um objetivo prioritário atualmente: sediar a Copa do Mundo de futebol de 2030, organizada pela Fifa, a federação internacional da modalidade esportiva.

Nas últimas semanas, como parte de uma grande campanha de propaganda estatal para tentar melhorar sua imagem, a Arábia Saudita passou a recrutar craques do futebol para atuarem no país. Muitos deles deixaram a Europa, epicentro global da modalidade, e viajaram rumo ao Oriente Médio seduzidos pelas centenas de milhões de dólares que o governo investiu no projeto. Entre eles, o brasileiro Neymar. Em um primeiro momento, no entanto, a empreitada teve efeito contrário, ao amplificar as vozes críticas ao governo liderado por Mohammed Bin Salman.

O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman: olho na Copa (Foto: Divulgação/WTO)
Futebol x direitos humanos

Em junho deste ano, a Sport & Rights Alliance, uma coalizão global de entidades humanitárias, sindicatos, jogadores e torcedores de futebol, destacou a importância da questão dos direitos humanos no debate para escolha da sede da Copa do Mundo de 2030. A definição ocorrerá no Congresso da Fifa marcado para 2024, ainda sem data definida.

Uma pesquisa encomendada pela ONG Anistia Internacional, realizada em 15 países, apontou que 53 % dos entrevistados acreditam que os direitos humanos devem ser uma consideração crítica para a decisão de quem sedia grandes eventos esportivos internacionais. Nesse cenário, a Arábia Saudita surge como um alvo óbvio.

“Ficou claro que o público deseja que os direitos humanos sejam uma alta prioridade, para que a Copa do Mundo seja uma celebração do esporte que eles amam e nunca forneça plataforma para exploração, repressão ou discriminação”, disse Steve Cockburn, chefe de justiça econômica e social da Anistia.

As críticas atingem também a Copa do Mundo de Clubes da Fifa, que em 2023 será justamente na Arábia Saudita, antes de ter o formato modificado para se tornar, então, quadrienal. Segundo Cockburn, ao escolher o país como sede neste ano, a Fifa “mais uma vez desconsiderou o atroz histórico de direitos humanos.”

Pena de morte

A Arábia Saudita está entre as nações líderes de abusos dos direitos humanos. No ano passado, aplicou a pena de morte 196 vezes, superando um recorde nacional que já durava 30 anos. Ficou atrás somente do Irã, que executou ao menos 576 pessoas, sem que os números reais sejam conhecidos, e da China, que as estimativas sugerem mais de mil execuções anuais, embora não haja dados estatais a respeito.

Além dos números alarmantes, pesa o fato de que os julgamentos carecem de um processo judicial justo, como advertiu a ONU em março de 2022, por ocasião das 81 execuções registradas em um só dia. Na oportunidade, 41 pessoas decapitadas por Riad eram da minoria xiita e participaram de protestos contra o governo entre 2011 e 2012, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Durante o processo judicial que leva à execução, os réus habitualmente são mantidos incomunicáveis. Alguns acabam condenados por crimes que cometeram quando eram menores de idade, quebrando uma promessa do governo de interromper tal prática.

Aconteceu com Abdullah al-Huwaiti, preso e julgado por assalto à mão armada e homicídio, supostos crimes imputados a ele quando tinha apenas 14 anos. A sentença de morte foi anunciada pela primeira vez em 2019, sendo posteriormente revertida. Em março do ano passado, porém, ele foi novamente julgado e sentenciado à morte.

Violência de gênero

Os abusos não se resumem à questão da pena de morte. A violência de gênero é uma das marcas do governo saudita, que no ano passado aprovou uma lei permitindo a discriminação em virtude do sexo da pessoa. Pelo texto legal, os homens podem atuar como tutores legais das mulheres, que precisam de autorização masculina para, por exemplo, se casar.

“Além disso, a lei não confere às mulheres e aos homens direitos iguais em questões relacionadas com os filhos em caso de separação”, afirma a Anistia. “Enquanto a guarda é concedida automaticamente à mãe, o pai é designado como o tutor legal da criança sem a devida consideração do melhor interesse da criança.”

Liberdade de imprensa

A repressão à imprensa também é intensa no país, que figura na rabeira do ranking mundial divulgado anualmente pela ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Na atualização mais recente, a Arábia Saudita aparece em 170º lugar entre 180 nações.

“A mídia independente é inexistente na Arábia Saudita, e os jornalistas sauditas vivem sob forte vigilância, mesmo no exterior. O número de jornalistas e blogueiros presos triplicou desde 2017”, diz a RSF em seu relatório anual. “Praticamente todos os meios de comunicação sauditas operam sob controle oficial direto.”

Com base nas leis locais, jornalistas que arrisquem qualquer crítica ao governo podem ser suspensos ou presos, sob o fundamento de “blasfêmia”, “incitação ao caos”, “pôr em risco a unidade nacional” ou “prejudicar a imagem e reputação do rei e do Estado.”

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