Série de erros levou à morte de jornalistas por grupo extremista em Burkina Faso

David Beriain e Roberto Fraile foram assassinados em abril quando faziam um documentário. Exercito ignorou riscos ao apoiar e aprovar o projeto

Falta de cadeia de comando, falhas dos serviços de inteligência, erros de projeto e pressão superior. Essas são algumas das circunstâncias que explicam a morte dos jornalistas espanhóis David Beriain e Roberto Fraile e do conservacionista irlandês Rory Young, assassinados por extremistas quando realizavam filmagens para um documentário no Parque Nacional de Arly, em Burkina Faso, no dia 26 de abril deste ano. Uma investigação realizada ao longo de seus meses pela agência catari Al Jazeera lança luz sobre o episódio, que até hoje carece de esclarecimentos oficiais por parte das forças armadas burquinabês.

Habituados a trabalhar em ambientes hostis, sobretudo em países em guerra, Beriain e Fraile viajaram à África para gravar um documentário sobre os desafios do trabalho conservacionista em Burkina Faso. Lá, ganharam a companhia de Young, da Chengeta Wildlife Foundation (Fundação da Vida Selvagem de Chengeta, em tradução literal), uma ONG que trabalha na proteção de animais selvagens e no combate à caça furtiva dessas espécies.

Beriain havia feito coberturas jornalísticas no Iraque, na Síria e no Afeganistão, tendo entrevistado o Taleban afegão e as Farc, na Colômbia. Já Fraile chegou a ser ferido na guerra da Síria, em 2012. Young, por sua vez, é descrito por pessoas próximas como um homem talhado para a missão. “Não há nenhuma outra pessoa que qualquer um de nós teria preferido ter ao lado durante um tiroteio”, diz Mark Bent, ex-coordenador regional de segurança e justiça dos EUA para o Mali e o Níger e principal contato do irlandês durante o trabalho dele como conservacionista.

Cenário violento

O país africano, palco das gravações, convive desde 2015 com a violência de grupos ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI), insurgência que levou a um conflito com as forças de segurança e matou mais de cinco mil pessoas. O Parque Nacional de Arly, na particularmente violenta região leste do país, onde seriam feitas as filmagens, bem como as rotas que levam a ele, são comandadas por extremistas. Sendo assim, era necessário o suporte do exército para minimizar os riscos atrelados à empreitada.

Roberto Fraile e David Beriain, jornalistas espanhóis mortos enquanto gravavam um documentário em Burkina Faso (Foto: reprodução/Twitter)

Duas organizações independentes, Armed Conflict Location & Event Data Project (Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos, da sigla em inglês ACLED) e International Crisis Group (Grupo de Crises Internacionais, da sigla em inglês ICG) reportaram a presença de grupos armados perto do parque no período em que ocorreriam as gravações.

Naquela área, predominam duas fações jihadistas: Jamaat Nasr al-Islam wal Muslimin (Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos, da sigla em árabe JNIM), um grupo ligado à Al-Qaeda, e o Estado Islâmico do Grande Saara (EIGS), a facção local do Estado Islâmico (EI). A presença dos extremistas expulsou dos parques até mesmo os guardas florestais, que antes atuavam na repressão à caça ilegal tema do documentário.

“A situação da segurança estava muito degradada e volátil, aquela rota estava sob controle jihadista”, afirma Mahamoudou Savadogo, analista militar e ex-policial no país africano. Segundo ele, é habitual os viajantes, mesmo funcionários do governo, viajarem pelos países vizinhos Togo ou Benin apenas para evitarem a rota usada pelo grupo.

Falhas de comando

Apesar dos riscos envolvidos, o projeto foi aprovado pelo exército burquinabê, segundo recorda o soldado Mohamed, que fez parte do grupo de escolta dos jornalistas e não tem o verdadeiro nome revelado para evitar represálias. “Havia uma base terrorista lá”, diz ele, citando um relatório de inteligência com a recomendação de suspender a missão devido ao alto risco. Segundo ele, porém, tal documento foi possivelmente omitido por oficiais de patente intermediária, embora não haja confirmação oficial desse fato.

Segundo Mohamed, a ordem para a realização da missão nunca foi formalmente assinada pelo comando do exército, algo imprescindível na burocracia militar. Com a ordem assinada, seria possível deslocar mais tropas para escoltar o grupo, ou mesmo haveria autoridade suficiente para cancelar a missão.

Além disso, um grupo de 15 guardas florestais que faria parte da equipe desistiu dias antes, razão suficiente para o adiamento devido à importância deles, por conhecerem bem a região. “Nós [pensamos] que, uma vez que os guardas não iriam para a missão, o projeto iria parar. Mas não foi o caso, [os militares] vieram e nos forçaram a ir”, disse Mohamed. Segundo ele a impressão é de que o exército queria o sucesso do projeto.

Soldados das forças de Burkina Faso durante exercício militar (Foto: WikiCommons)

Com a missão aprovada, foram destacadas 32 pessoas para a escolta fortemente armada, entre soldados e guardas florestais. Pouco antes da missão, a ONG Chengeta foi informada da presença de um grupo de homens armados a cerca de 35 quilômetros do ponto onde o grupo pretendia ingressar no parque. A partir desses dados, foi definido o exato local de acesso, com a designação de uma equipe de resposta rápida para prestar auxílio em caso de problemas.

Entretanto, Mathieu Pellerin, analista do ICG para o Sahel africano, diz que a situação era mais complexa e perigosa. “A área estava quase totalmente sob controle do JNIM”, disse ele, citando a existência de ao menos três bases conhecidas do grupo jihadista na região. Mohamed reforça a informação e diz que uma patrulha policial feita dias antes confirmou a presença de homens armados e recomendou o cancelamento da missão. “O relatório que escreveram dizia que [a missão] não deveria prosseguir. Mas não foi respeitado. Se tivesse sido respeitado, não teríamos ido”, afirma.

Ignoradas todas as recomendações em contrário, a missão teve início na manhã do dia 26 de abril. Foram destacadas duas caminhonetes com metralhadoras na caçamba e 12 motocicletas para conduzir o grupo de 36 pessoas: 32 agentes de segurança, os dois espanhóis, o irlandês e um treinador suíço da Chengeta.

A missão

O grupo mal teve tempo de entrar no parque e foi recebido por disparos de metralhadora. Os soldados recuaram e imediatamente acionaram a equipe de resposta imediata. Ninguém havia se ferido até então, mas a situação mudou de figura quando, cerca de 30 minutos depois, um novo grupo de 40 jihadistas apareceu atirando. Fraile foi atingido quase instantaneamente, enquanto Beriain e Young saíram da caminhonete e se esconderam atrás dela. “Eles estavam com medo, não sabiam o que fazer. Era como se eles estivessem perdidos”, conta Mohamed.

No meio do tiroteio, testemunhas relatam que o treinador suíço chegou a subir na caçamba e disparar a metralhadora no lugar de um solado ferido. Enquanto o ataque se concentrava no veículo onde estava o trio, os soldados e o suíço engatinharam para fora do parque, afastando-se dos disparos. Os corpos dos três foram depois encontrados a alguns metros do local da emboscada. “Devido à intensidade do tiroteio, foi impossível resgatá-los”, recorda o militar.

Fotos dos corpos mostram uma das vítimas com as mãos para trás, possivelmente amarradas, num indício de que tenha sido executado. Segundo o jornal El País, Beriain e Young permaneceram com Fraile após ele ser baleado e ficaram na linha de fogo quando os soldados recuaram. Assim, acabaram sendo alcançados pelos extremistas.

Justificativas

Segundo um porta-voz da Chengeta, havia “capacidade suficiente”, por isso o projeto foi mantido mesmo diante dos riscos. Militares e trabalhadores humanitários, por sua vez, afirmam que a patrulha seguiu em frente mesmo sem os 15 guardas florestais porque Young teria que deixar o país no final da semana e não poderia adiar as filmagens. Fato é que, desde as mortes, ninguém foi responsabilizado oficialmente.

Um relatório militar chegou a afirmar que os jornalistas foram culpados porque, “infelizmente”, não seguiram as instruções dos soldados para fugir. O Ministério da Defesa seguiu o mesmo caminho num comunicado posterior ao ataque, o qual recomendava aos “amigos de Burkina Faso para cumprir as instruções de segurança emitidas pelas forças de defesa e segurança durante a sua estada”.

O jornalista Roberto Lozano Bruna, amigo dos dois espanhóis mortos, refuta a versão de que tenham desobedecido ordens. “Eles eram corajosos, mas não eram estúpidos”. E Mohamed, que presenciou o episódio, tem uma explicação objetiva para o que ocorreu no dia 26 de abril: “A missão em Arly foi mal organizada e executada”.

Por que isso importa?

A violência de organizações jihadistas atinge Burkina Faso desde 2015, com uma escalada da violência registrada nos últimos três anos. Grupos armados lançam ataques ao exército e a civis, desafiando também a presença de tropas francesas e internacionais.

Os ataques costumavam se concentrar no norte e no leste, mas já se alastraram por todo o país. O pior ataque jihadista já registrado em Burkina Faso ocorreu em 5 de junho, quando insurgentes incendiaram casas e atiraram em civis ao invadirem a vila de Solhan, no norte. Na ocasião, 160 pessoas morreram.

Houve um período de trégua e relativa calmaria fruto de negociações entre o governo e organizações extremistas, por conta da eleição presidencial do ano passado. Mas a violência foi retomada neste ano, inclusive com o ressurgimento de postos de controle dos jihadistas, que forçam os cidadãos a se identificarem sob a ameaça de sequestro e outras formas de violência.

Desde que o conflito teve início, os ataques de organizações extremistas geraram uma crise humanitária que forçou mais de 1,5 milhão de pessoas a fugirem de suas casas. Estima-se que quase 5 milhões de pessoas sofram de insegurança alimentar, com quase 3 milhões em situação de insegurança alimentar aguda.

No Brasil

Casos mostram que o Brasil é um “porto seguro” para extremistas. Em dezembro de 2013, levantamento do site The Brazil Business indicava a presença de ao menos sete organizações terroristas no Brasil: Al Qaeda, Jihad Media Battalion, Hezbollah, Hamas, Jihad Islâmica, Al-Gama’a Al-Islamiyya e Grupo Combatente Islâmico Marroquino.

Em 2001, uma investigação da revista VEJA mostrou que 20 membros terroristas de Al-Qaeda, Hamas e Hezbollah viviam no país, disseminando propaganda terrorista, coletando dinheiro, recrutando novos membros e planejando atos violentos.

Em 2016, duas semanas antes do início dos Jogos Olímpicos no Rio, a PF prendeu um grupo jihadista islâmico que planejava atentados semelhantes aos dos Jogos de Munique em 1972. Dez suspeitos de serem aliados ao Estado Islâmico foram presos e dois fugiram. Saiba mais.

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