China recruta aliados, entre eles o Brasil, para que contestem denúncias de abusos em Xinjiang

Membros do corpo consular brasileiro visitaram a região chinesa, onde teriam ouvido pedidos para refutarem "notícias falsas anti-China"
Por Paulo Tescarolo

O governo da China convocou um grupo de nações parceiras, entre elas o Brasil, para fazerem coro com o país asiático na defesa contra as acusações de abusos praticados por Beijing contra minorias étnico-religiosas, sobretudo a dos uigures, na região de Xinjiang. A revelação foi feita nesta semana pela rede Radio Free Asia (RFA), e a atitude de Beijing gerou reações diversas entre analistas e entidades internacionais, alguns dos quais foram ouvidos com exclusividade pela reportagem de A Referência.

A RFA afirma que, a convite de Beijing, representantes das missões diplomáticas de ao menos 12 países fizeram uma visita a Xinjiang na companhia de Ma Xingrui, secretário do Partido Comunista Chinês (PCC) na região. A agência de notícias estatal chinesa Xinhua confirmou a visita, que durou quatro dias, de 24 a 28 de abril, e contou com representantes de Brasil, Mianmar, Nepal, Vietnã, Camboja, Indonésia, Uganda, Paquistão, Equador, Irã, Senegal e Turquia. Eles passaram pela capital regional Urumqi e pelas cidades de Kashgar e Turpan.

Ainda de acordo com a RFA, Ma teria aproveitado o encontro para convocar as nações ali representadas a levantarem “suas vozes justas” contra as acusações. “Algumas forças anti-China nos países ocidentais, lideradas pelos EUA, estão destruindo o progresso dos direitos humanos em Xinjiang, espalhando inúmeras notícias falsas anti-China e difamando a imagem da China”, teria dito ele no discurso de boas-vindas.

A Xinhua reproduziu declarações de alguns dos convidados que compraram a briga chinesa. “A notícia da mídia ocidental de que o governo chinês não permite que os muçulmanos façam atividades religiosas não é verdadeira”, disse Ben Perkasa Drajat, cônsul-geral em Guangzhou pela Indonésia, país com a maior população muçulmana do mundo.

Já Judyth Muthoni Nsababera, cônsul-geral de Uganda em Guangzhou, afirmou, ainda segundo a Xinhua, que “não acreditaria cegamente nas mentiras sobre Xinjiang que foram fabricadas pela mídia ocidental”. E adicionou: “É importante vir e ver a região e senti-la pessoalmente, e a China tem o direito de escolher seu próprio caminho”.

Frederico Meyer, cônsul-geral do Brasil em Cantão, confirmou à reportagem de A Referência, por e-mail, que “o Foreign Affairs Office de Guangdong convidou membros do corpo consular de Guangzhou, Chengdu e Chongqing para visitar Kashgar e Urumqi. A visita teve sobretudo caráter turístico”.

Ele também afirmou, sem citar o nome de Ma Xingrui, que a parte oficial da visita “constou de encontro com o vice-diretor do departamento consular do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China onde foram discutidas questões consulares”.

Entretanto, negou ter presenciado qualquer “solicitação de representante do Partido Comunista Chinês”, como relatou a RFA. E finalizou: “O meu posicionamento é o tradicional do Itamaraty: o não envolvimento em assuntos internos de outros países”.

Abusos documentados

Para a Anistia Internacional, que há mais de 60 anos defende causas ligadas aos direitos humanos, as alegações feitas pela China aos convidados são incabíveis. “As violações dos direitos humanos perpetradas pelo governo chinês contra uigures, cazaques e outras comunidades muçulmanas estão longe de serem ‘notícias falsas’. Em vez disso, elas foram bem documentadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), entre muitos outros”, disse Alkan Akad, pesquisador da ONG na China, que também falou com A Referência por e-mail.

O movimento brasileiro Democracia Sem Fronteiras (DSF), outra voz ativa contra os abusos de Beijing, igualmente contestou a alegação, através de comunicado oficial. “Não há que se falar em nenhuma tentativa dos países ocidentais, sob a liderança dos Estados Unidos, de difamar a China e sua postura autoritária. O que ocorre, simplesmente, é a demonstração de repúdio à forma como o governo chinês age tanto na sua política interna quanto externa”, disse a entidade em comunicado. “É do conhecimento de todos que o governo chinês tem cometido uma série de arbitrariedades e violações dos direitos humanos. Logo, não há difamação”.

Vista aérea de Urumqi, capital da província de Xinjiang, em julho de 2017 (Foto: WikiCommons/Anagoria)
China sob pressão

A iniciativa do governo de Xi Jinping para seduzir seus aliados ocorre em um momento de crescente pressão global sobre Beijing devido aos abusos em Xinjiang. Os uigures, cerca de 11 milhões, são as principais vítimas. Eles enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% da população da China. Há relatos de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos, parte de um processo de limpeza étnica e religiosa.

De acordo com Hu Ping, analista de questões ligadas à China e ex-editor-chefe da revista Beijing Spring, o convite às nações parceiras para visitar Xinjiang e a declaração de Ma evidenciam os esforços do governo chinês para melhorar sua imagem ante ao escrutínio global.

“O governo chinês agora está usando esse método para acalmar a atitude da comunidade internacional em relação à China”, disse ele à RFA. “O governo chinês está aproveitando esse tipo de oportunidade, tentando mostrar uma ‘falsa Xinjiang feliz’ ao mundo exterior e, assim, tentando esconder seus crimes contra a humanidade cometidos com métodos cruéis”.

A Anistia Internacional segue pelo mesmo caminho. “Quando as autoridades chinesas procuram persuadir outros governos a apoiá-las, apesar das evidências crescentes de sistemáticos aprisionamentos em massa organizados pelo Estado, tortura e perseguição de minorias em Xinjiang, eles o fazem com a intenção de influenciar os votos da ONU (Organização das Nações Unidas) e de fugir da responsabilidade por essas violações. A comunidade internacional deve trabalhar em conjunto para denunciar as atrocidades do governo chinês em Xinjiang pelo que são”, declarou Akad.

A relação Brasil-China

Beijing obteve uma vitória em outubro de 2022, quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU rejeitou a proposta para debater os supostos abusos. A votação contabilizou 19 votos contra, 17 a favor e 11 abstenções. Foi a segunda vez em 16 anos de história do órgão que uma moção foi rejeitada, graças ao trabalho de bastidores do governo chinês. O Brasil esteve entre os países que se abstiveram na votação, um indício de que prefere preservar a boa relação com seu principal parceiro comercial.

Na visão de Rubens Beçak, professor da FDRP-USP, livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e professor visitante da Universidade de Salamanca, na Espanha, no curso Master em Estudos Brasileiros, o atual posicionamento do Brasil quanto à questão de Xinjiang está desconectado do momento geopolítico global.

“É um descompasso ideológico com o tempo em que nós vivemos”, disse ele à reportagem de A Referência. “Tem essa questão ideológica: ‘Vamos deixar claro que não estamos mais automaticamente alinhados com os Estados Unidos. Vamos deixar claro que o Brasil tem um peso e vamos voltar nossa face para a África, para a Ásia’. Tem um tanto desse discurso. É um discurso às vezes descabido”.

Abusos documentados

Apesar da estratégia chinesa de dissuasão, que tem o Brasil como um dos alvos, a pressão global não diminuiu. Em novembro de 2022, um grupo de 50 países encabeçado pelos EUA apresentou na Assembleia Geral da ONU um documento denunciando a China pelo tratamento dedicado aos uigures e a outras minorias muçulmanas na região.

O documento surgiu na esteira de um relatório divulgado pelo ACNUDH no final de agosto do ano passado. Nele, foram citadas “graves violações dos direitos humanos” cometidas em Xinjiang, com “padrões de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e condições adversas de detenção”, bem como “alegações de incidentes individuais de violência sexual e de gênero”.

O relatório do ACNUDH, porém, não apresenta a palavra “genocídio“, que foi usada pela primeira vez pelo governo de Joe Biden para descrever as ações da China em relação aos uigures. Reino Unido e Canadá também adotaram a designação posteriormente, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

A posição chinesa

O governo chinês refuta as acusações de abusos em Xinjiang e classifica como “campos de reeducação” as áreas onde vivem milhões de uigures. O argumento para isolar e vigiar a etnia muçulmana é o da “segurança nacional”, sob a justificativa de evitar a radicalização dos fiéis.

Abbas Khan, cônsul-geral interino paquistanês em Chengdu, abraçou essa teoria durante a visita. “Para erradicar o terrorismo, é crucial ter um plano abrangente para o desenvolvimento de uma região e ajudar as pessoas a melhorarem suas vidas”, afirmou ele, segundo a Xinhua. “E a China fez enormes avanços”, complementou.

Já Zhao Lijian, ex-porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, chegou a afirmar em mais de uma ocasião, quando ainda ocupava o cargo, que o trabalho forçado uigur, outra denúncia que pesa contra o governo chinês, é “a maior mentira do século”.

Ele condenou as sanções econômicas impostas pelo governo norte-americano a empresas de todo o mundo que usem produtos ou matérias-primas provenientes de Xinjiang. “Os Estados Unidos tanto criam mentiras quanto tomam ações flagrantes com base em suas mentiras para violar as regras do comércio internacional e os princípios da economia de mercado”, disse Zhao.

A recente visita dos representantes estrangeiros a Xinjiang reforça esse posicionamento de Beijing. E não foi um casso isolado, de acordo com a RFA. Episódios semelhantes já haviam sido registrados, com autoridades chinesas buscando expor a nações parceiras o que consideram desenvolvimento econômico e social na região.

Segundo disse Ma aos convidados, a situação dos uigures é estável, com unidade étnica, harmonia religiosa e desenvolvimento econômico e social. Uma visão que definitivamente não é compartilhada pela comunidade internacional.

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