Lula finalmente está se voltando contra a Venezuela

Artigo destaca a proximidade histórica entre os governos brasileiro e venezuelano e explica o gradual distanciamento notado atualmente

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site da revista Foreign Policy

Por Felipe Krause e Gabriel Brasil

O regime do presidente venezuelano Nicolás Maduro tem poucos aliados na América Latina — ou no mundo — tão cruciais quanto o Brasil. Sob os presidentes do Partido dos Trabalhadores (PT) Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff — e seu estrategista de política externa de longa data Celso Amorim —, o Brasil tem apoiado consistentemente os governos bolivarianos de esquerda da Venezuela, do ex-presidente Hugo Chávez a Maduro. Mesmo antes da presidência de Lula, o Brasil apoiou a Venezuela. Em 2002, sob o presidente centrista Fernando Henrique Cardoso, o Brasil rapidamente condenou a tentativa de golpe contra Chávez, opondo-se diretamente à posição dos EUA.

Desde então — com exceção dos anos do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, quando as relações azedaram —, ambas as nações forjaram laços fortes por meio da cooperação energética, comércio e esforços ambientais, particularmente em sua responsabilidade compartilhada pela floresta amazônica. Essa cooperação foi vital para preservar a biodiversidade, combater o crime organizado e resistir às pressões externas, tornando a Venezuela um aliado-chave do Brasil em várias frentes. Para o regime bolivariano cada vez mais isolado, o apoio brasileiro foi uma tábua de salvação essencial.

Nos últimos meses, no entanto, uma mudança sutil, mas clara, na postura do Brasil vem tomando forma. Essa mudança ganhou força após as recentes eleições na Venezuela, que Maduro alega ter vencido, apesar de terem sido amplamente condenadas por observadores internacionais como falhas e ilegítimas.

Em um afastamento de seu apoio historicamente inabalável — e contrário à posição oficial do PT —, Lula se absteve de aceitar a vitória de Maduro. Duas semanas após a votação, Lula rotulou o governo de Maduro como um “regime muito desagradável” com uma “inclinação autoritária”, parando a pouco menos de chamar a Venezuela de ditadura.

O que explica essa mudança de tom? A posição de Lula sobre a Venezuela é uma recalibração cuidadosa, na qual considerações práticas estão lentamente eclipsando antigas lealdades ideológicas. Ela reflete mudanças políticas, sociais e econômicas subjacentes tanto no Brasil quanto na região. Embora gradual, essa mudança é inconfundível.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, maio de 2023 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Vários fatores estão impulsionando essa reorientação: a escala e a intensidade dos recentes protestos anti-Maduro na Venezuela, a crescente influência da diáspora venezuelana na América Latina, a mudança na opinião pública no Brasil, o declínio do poder dos aliados internacionais de Maduro e a influência persistente do pragmatismo econômico, uma marca registrada dos governos de Lula.

Um dos catalisadores mais imediatos e visíveis para a mudança do Brasil foi a intensificação dos protestos anti-Maduro na Venezuela. Pela primeira vez em anos, essas manifestações atraíram um grande número de cidadãos da classe trabalhadora — as mesmas pessoas que antes formavam a espinha dorsal do apoio ao regime bolivariano. A escala e a determinação desses protestos tornaram difícil para o Brasil, liderado pelo próprio campeão dos trabalhadores, o presidente Lula, fechar os olhos para a crescente onda de oposição doméstica contra Maduro.

Os protestos refletem a insatisfação generalizada com mais de um quarto de século de políticas fracassadas que levaram ao colapso econômico, pobreza generalizada e agitação social. Desde que Maduro assumiu o poder, em 2013, o PIB (produto interno bruto) contraiu em mais de 80%, e a inflação disparada (atingindo o pico da taxa surpreendente de 130.000% em 2018) corroeu os padrões de vida dos venezuelanos.

Continuar apoiando Maduro nessas circunstâncias arriscaria alinhar o Brasil a um regime que é cada vez mais visto como ilegítimo e indesejado tanto por seu próprio povo quanto pela comunidade internacional.

Outro fator importante que influencia a mudança de política do Brasil é a crescente visibilidade e influência da diáspora venezuelana. Com mais de oito milhões de venezuelanos tendo fugido de seu país na última década, a diáspora se tornou uma força significativa — tanto social quanto politicamente — em países da América Latina, incluindo o Brasil. Essa população serve como um forte lembrete das crises humanitária e econômica causadas pelo regime de Maduro, e sua presença no Brasil, mesmo que ainda proporcionalmente pequena, está cada vez mais pressionando Lula.

No Brasil, a diáspora venezuelana não é apenas uma preocupação humanitária, mas também política. Suas histórias de dificuldades e deslocamento ressoam na população brasileira, que também está farta das implicações da má gestão econômica.

Internamente, a opinião pública brasileira se voltou decisivamente contra o regime bolivariano. Essa mudança é particularmente notável entre alguns círculos tradicionais de esquerda no Brasil, que historicamente têm sido simpáticos a governos socialistas na América Latina — muitas vezes desafiando o clamor internacional sobre violações de direitos humanos e falta de responsabilização democrática.

No entanto, mesmo esses grupos estão agora se distanciando de Maduro, como demonstrado recentemente pela recepção negativa a declarações persistentemente pró-Maduro emitidas pelo PT e outras organizações de esquerda, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dados de pesquisas confirmam ainda mais esse crescente descontentamento. Por exemplo, uma pesquisa publicada no final de agosto pelo instituto Vox Populi mostrou que 62% dos brasileiros que se identificam como “esquerdistas” acreditavam que Maduro cometeu fraude durante as eleições de julho.

A crescente desilusão com o regime de Maduro entre a esquerda brasileira foi causada, em grande medida, pela percepção de que o projeto bolivariano falhou em cumprir suas promessas de justiça social e igualdade econômica. Em vez disso, levou ao autoritarismo, colapso econômico e abusos de direitos humanos.

Para os esquerdistas brasileiros, ficar com Maduro parece cada vez mais um caminho rápido para o isolamento político, tanto em casa quanto no exterior, à medida que a solidariedade global com seu regime continua a desaparecer. Além disso, Maduro nunca foi um forte defensor de causas progressistas como direitos LGBT ou proteção ambiental, alienando ainda mais segmentos-chave da esquerda brasileira — particularmente membros de gerações mais jovens que veem essas questões como essenciais.

Outro fator doméstico que influencia a opinião pública sobre a Venezuela são os recentes desafios democráticos do Brasil. Em 2022, Lula foi forçado a depender de uma coalizão pró-democracia mais ampla para retornar ao poder. Priorizar a ideologia sobre os valores democráticos na política externa agora corre o risco de alienar eleitores independentes e centristas — aqueles que nunca foram fortes apoiadores de Lula, mas confiaram nele para derrotar Bolsonaro e salvaguardar a frágil democracia do Brasil.

Além das pressões domésticas, o crescente isolamento internacional da Venezuela tornou o apoio contínuo a Maduro menos atraente para o Brasil. Enquanto a Rússia e a China permanecem entre os poucos aliados restantes de Maduro, isso representa um desafio para a administração de Lula. O Brasil tem sido duramente criticado por seus laços com regimes não liberais que são vistos como trabalhando para desestabilizar democracias e a ordem internacional baseada em regras. Apoiar Maduro corre o risco de enredar ainda mais o Brasil neste grupo.

Mesmo na América Latina, o regime de Maduro está enfrentando crescente repúdio, com dez países — incluindo o Chile liderado pela esquerda, sob o presidente Gabriel Boric — rejeitando oficialmente sua autodeclarada vitória eleitoral. Esse isolamento crescente aumenta os incentivos para Lula se envolver com a oposição da Venezuela, à medida que a região e a comunidade global se distanciam cada vez mais de Maduro.

Enquanto isso, o governo Biden mudou a política dos EUA em relação à América Latina, colocando uma ênfase renovada na governança democrática e nos direitos humanos na região. Nesse contexto, a retórica esquerdista outrora dominante de culpar os Estados Unidos pelos problemas da América Latina perdeu um pouco de sua influência, tornando politicamente mais seguro para Lula se envolver com a oposição venezuelana e apoiar os apelos por mudanças democráticas.

Essa tendência pode se intensificar se a vice-presidente Kamala Harris vencer as próximas eleições nos EUA, já que seu compromisso com a justiça, os direitos humanos e o enfrentamento das “causas profundas” da migração é geralmente bem recebido pela esquerda latino-americana.

Fatores econômicos também estão desempenhando um papel crítico na postura evolutiva do Brasil em relação ao seu vizinho. O declínio econômico da Venezuela, antes visto como um revés temporário, agora é amplamente considerado irreversível sob o regime atual. Para o Brasil, isso significa que os benefícios econômicos de manter laços estreitos com Maduro estão diminuindo, enquanto as recompensas potenciais de se envolver com uma Venezuela democrática e orientada para o mercado se tornaram mais atraentes.

As empresas brasileiras, antes ansiosas para explorar oportunidades na Venezuela, têm procurado em outros lugares, à medida que a economia do país continua a se deteriorar. As consequências da Operação Lava Jato (uma investigação massiva de corrupção que expôs corrupção generalizada envolvendo empresas brasileiras e autoridades estrangeiras, incluindo venezuelanas) aumentaram os riscos de manter laços estreitos com o regime de Maduro. O fim do fluxo de fundos ilícitos de contratos inflacionados na Venezuela também removeu um interesse econômico fundamental que antes unia os dois países.

Além disso, o Brasil está cada vez mais ciente de que seus interesses econômicos de longo prazo na região são melhor atendidos por estabilidade e crescimento, que são altamente improváveis ​​de serem alcançados sob o atual governo venezuelano. Uma Venezuela democrática, integrada em redes regionais de comércio e investimento, oferece muito mais potencial para colaboração econômica do que um Estado falido que está perpetuamente à beira do colapso.

As recentes reivindicações territoriais de Maduro sobre a Guiana, que levantaram preocupações na comunidade internacional e desafiaram a capacidade do Brasil de manter a paz na América do Sul, foram apenas o exemplo mais recente de como regimes autoritários fracassados ​​ameaçam a estabilidade necessária para a prosperidade econômica regional.

Todos esses fatores indicam que a postura em evolução do Brasil em relação à Venezuela é mais do que apenas retórica — representa uma reorientação estratégica impulsionada por demandas domésticas e internacionais urgentes. Lula, junto com seu arquiteto de política externa, Amorim, está repensando o papel do Brasil na região.

Eles reconhecem que apoiar cautelosamente a mudança democrática na Venezuela, mesmo que incrementalmente, está muito mais alinhado com os interesses de longo prazo do Brasil do que manter laços ultrapassados ​​com a solidariedade bolivariana. É um caso de antes tarde do que nunca.

No entanto, apesar dos sinais desse realinhamento estratégico, o Brasil tem lutado para transformar sua posição de mudança em ação concreta. A abordagem cautelosa do governo à eleição fraudulenta de Maduro — evidenciada pela relutância de Lula e Amorim em expressar totalmente seu descontentamento — corre o risco de diminuir a influência do Brasil em negociações críticas em andamento.

O Brasil deve assumir a liderança no trabalho com outros corretores de poder regionais para traçar um caminho diplomático para o futuro da democracia na Venezuela. Como a maior economia da região, e com ambições explícitas sob Lula e Amorim para elevar sua posição geopolítica, o Brasil está bem posicionado para fazê-lo. Um esforço trilateral com a Colômbia e o México para mediar entre o governo venezuelano e a oposição inicialmente pareceu promissor. No entanto, a falta de resultados tangíveis até agora continua sendo uma preocupação.

Ainda assim, o Brasil continua sendo um ator fundamental no diálogo, mesmo que seu relacionamento com o regime venezuelano não seja mais tão firme quanto antes.

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