EXCLUSIVO – ONG de Nova York reforça denúncia contra empresas chinesas por abusos trabalhistas no Brasil

Segundo a China Labor Watch, trabalhadores relataram confisco de passaportes e retenção de salários por empresas controladas por Beijing

Por André Amaral

Desde o início do século 21, a China vem sedimentando sua presença na América Latina, apresentando-se como uma fonte de oportunidades econômicas e uma alternativa aos EUA, cuja presença histórica na região a levou a ser chamada de “quintal” norte-americano. Porém, paralelamente, Beijing levanta preocupações sobre a forma como impõe sua influência. Entre os motivos que causam apreensão estão direitos trabalhistas não respeitados por empresas chinesas instaladas no continente. Inclusive no Brasil.

A Referência conversou com Li Qiang, fundador e diretor-executivo da China Labor Watch (CLW), uma organização não governamental (ONG) sediada em Nova York, nos EUA, que tem a missão de monitorar as condições de trabalho promovidas pelo gigante asiático dentro e fora do seu território.

“Identificamos em redes sociais e fóruns na internet reclamações de trabalhadores chineses no Brasil e na América Latina de que as empresas chinesas confiscaram seus passaportes e retiveram seus salários. Geralmente são situações de liberdade pessoal limitada, trabalho forçado e tráfico de pessoas“, disse, sem especificar quais as companhias denunciadas.

Operários da construção civil (Foto: Alejandro Avila Cortez/Pixabay)

Qiang explica que o confisco dos passaportes dos trabalhadores pelas empresas chinesas é uma prática muito comum.

“Depois que os passaportes são confiscados, os movimentos dos trabalhadores ficam restritos, pois os passaportes são a única forma de documento de identificação pessoal aplicável a estrangeiros que vivem em um país estrangeiro”, afirmou.

De acordo com ele, muitos dos abusos no continente estão relacionados à iniciativa Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative), a qual, segundo Qiang, faz uso de mão de obra chinesa nos países hospedeiros como forma de reduzir os custos trabalhistas.

“Sabemos que as empresas chinesas geralmente maltratam tanto os trabalhadores chineses quanto os de outros países”, observou Qiang ao citar o projeto lançado pelo presidente Xi Jinping para financiar obras de infraestrutura no exterior.

O líder da CLW enfatiza que esse tipo de situação estimula de forma danosa a competividade dentro das equipes multinacionais de trabalho.

“As condições dos trabalhadores chineses também afetam os padrões trabalhistas no país anfitrião. As empresas chinesas simplesmente usam os maus-tratos contra os trabalhadores chineses para torná-los mais competitivos em relação aos trabalhadores do país anfitrião”, declarou.

Qiang acrescentou que, para enfrentar esses casos mundo afora, a ONG que ele coordena fornece treinamento e presta assistência jurídica, de modo a buscar melhorar a situação dos trabalhadores afetados por métodos que ferem a dignidade.

Trabalhadores x trabalhadores

Em meio a tantos casos de abusos de empresas chinesas e consequente insatisfação de trabalhadores submetidos a situações indignas, Qiang chamou a atenção para uma greve registrada no começo do ano em um complexo industrial de fundição controlado pela China na província de Celebes Centrais, na Indonésia. O ato de protesto resultou em vítimas fatais após um confronto que colocou colegas frente a frente.

O violento conflito ocorreu no complexo da fundição Gunbuster Nickel Industry (GNI), que acabou com pelo menos duas mortes. Entre as vítimas fatais estava um trabalhador chinês e um trabalhador indonésio. Além disso, mais de uma dezena de operários ficaram feridos.

Imagem do conflito na Gunbuster Nickel Industry (Foto: CLW/Reprodução)

Segundo a CLW, centenas de trabalhadores exigiam que a empresa cumprisse as leis indonésias e implementasse procedimentos de segurança adequados, bem como fornecesse equipamentos de proteção individual aos funcionários, evitasse cortes salariais injustificados e encerrasse práticas de contratação discriminatórias.

Em resposta à greve, a administração da GNI recorreu à contratação de trabalhadores chineses para interromper o movimento grevista, bloquear os portões da fábrica e proteger a propriedade da empresa. Um vídeo registrado por um trabalhador indonésio em 14 de janeiro mostra trabalhadores chineses armados com canos de metal envolvendo-se em confrontos físicos com os operários indonésios em greve.

Acidentes e mortes não relatadas são frequentes tanto na GNI quanto em outras instalações pertencentes à chinesa Jiangsu Delong Nickel Company. Uma investigação conduzida pela Comissão Nacional de Direitos Humanos da Indonésia revelou que sete pessoas perderam a vida devido a incidentes relacionados ao trabalho na fundição no ano passado.

Cadeias de subcontratação

Segundo o CLW, existe um aspecto menos conhecido da iniciativa Nova Rota da Seda (BRI) que precisa ser analisado: as condições de trabalho dos trabalhadores chineses envolvidos nesses projetos. De acordo com os dados do Ministério do Comércio da China em 2021, havia cerca de 592 mil trabalhadores chineses no exterior. No entanto, é importante ressaltar que esse número é menor do que antes da pandemia de Covid-19 e exclui os trabalhadores chineses sem visto de trabalho válido.

Um estudo conduzido pela ONG, que se baseou em entrevistas com 333 trabalhadores chineses na Indonésia, revelou que apenas 27,6% deles possuíam vistos de trabalho válidos para o país. Isso indica que milhões de chineses podem estar empregados em projetos da BRI.

Essas pessoas, contratadas por meio de complicadas cadeias de subcontratação, muitas vezes se encontram isoladas em suas nações anfitriãs, com ou sem status legal e sem conhecimento dos recursos legais locais. Como resultado, enfrentam condições de trabalho exploradoras e perigosas, diz a CLW.

“Na verdade, muitos desses trabalhadores enfrentam circunstâncias que não apenas se enquadram na definição de trabalho forçado estabelecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas também às vezes envolvem tráfico humano e escravidão moderna. É um problema sério que requer atenção e ação para garantir a proteção dos direitos e a segurança desses trabalhadores”, diz a ONG.

Humilhação

As empresas chinesas têm sido grandes investidoras nos setores de energia, infraestrutura e tecnologia espacial da América do Sul, levando Beijing a superar os Estados Unidos como o principal parceiro comercial na região. No Brasil, recentemente foram registrados atos de assédio moral contra trabalhadores da Usina Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias, popularmente conhecida como Usina Jupiá, no Estado do Mato Grosso do Sul, gerando um clima de intimidação e humilhação no local de trabalho.

Em resposta, o Ministério Público do Trabalho (MPT) aplicou multas que chegaram a R$ 500 mil às empresas PowerChina Brasil Construtora Ltda.Rio Paraná Energia S.A. e China Three Gorges Brasil Energia Ltda.

Usina Jupiá, no Estado do Mato Grosso do Sul (Foto: Gustavo Maximo/Flickr)

O MPT relatou que os trabalhadores afetados, que dedicavam suas energias e esforços ao avanço da construção da Usina Jupiá, foram submetidos a situações degradantes e desrespeitosas por parte dos encarregados chineses.

Segundo a juíza responsável pelo caso, houve tratamento humilhante durante a vigência contratual. Como exemplo, restrição ao uso de banheiros, que tinha tempo cronometrado, com repreensões em frente a outros funcionários “se o tempo fosse longo’ aos olhos dos gestores chineses”, detalhou Vivian Letícia de Oliveira.

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