Presente no Brasil, rede de desinformação russa ecoa o discurso de Putin e tenta desestabilizar o Ocidente

Analistas ouvidos por A Referência destacam a força da máquina de propaganda do Kremlin e como ela tenta mudar o equilíbrio de forças global

Por Paulo Tescarolo

A Rússia controla hoje a maior e mais eficiente rede de desinformação do mundo. Mesmo China, Irã e Coreia do Norte, aliados e atores igualmente relevantes nessa área, não fazem frente a Moscou. Além de tentar semear instabilidade em países rivais, sobretudo nos Estados Unidos e seus parceiros ocidentais, o Kremlin usa a máquina de propaganda para dialogar com o próprio cidadão russo e assim fortalecer o regime de Vladimir Putin internamente.

Para entender o tamanho da ameaça, A Referência ouviu dois especialistas no tema, que alertaram para o alcance global da rede de desinformação da Rússia, que por vezes faz uso de entidades de outros países para difundir a retórica do Kremlin e enfraquecer ideias que lhe são prejudiciais, como a democracia. E o Brasil é parte dessa engrenagem, segundo relatório do Departamento de Estado norte-americano.

“A Rússia é responsável por quase o dobro das operações [de desinformação] que o resto do mundo combinado. Ninguém mais tem a experiência que o Kremlin tem”, disse à reportagem Jakub Kalenský, analista sênior focado na desinformação russa do Centro Europeu de Excelência para Combate a Ameaças Híbridas, alinhado com Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e União Europeia (UE).

Kalenský destaca que a Rússia “foi muito ativa neste aspecto já durante a Guerra Fria”, o que permitiu o desenvolvimento de um programa de desinformação e propaganda que hoje está presente em diversos países do mundo e não encontra rival nem entre seus aliados.

“A China é um ator muito forte, o Irã e a Coreia do Norte também, e o Daesh (sigla em árabe para o Estado Islâmico) é provavelmente o mais forte entre os atores não estatais. Mas acima do resto está a Rússia”, disse ele, acrescentando que Beijing “poderá recuperar o atraso dentro de alguns anos, dado que tem mais recursos, mas ainda não tem tanta experiência.”

Putin usa a desinformação para se perpetuar no poder e fortalecer suas políticas (Foto: Kremlin)
A desinformação russa no Brasil

De acordo com o Departamento de Estado, o principal aliado do Kremlin no Brasil é o movimento Nova Resistência, composto por “uma rede de desinformação e propaganda pró-Kremlin” e inspirado nas ideias de Alexander Dugin, “filósofo” russo sancionado por Washington e “principal proponente de um movimento imperialista eurasiano antiocidental liderado pela Rússia.”

Trata-se, segundo o relatório do órgão governamental dos EUA, de uma ramificação da rede global homônima New Resistance, que “promove agressivamente a Quarta Teoria Política de Dugin” e visa unir movimentos de extrema direita e extrema esquerda para “destruir a ordem pós-Segunda Guerra Mundial.”

Movimentos como a Nova Resistência podem ter funções diversas dentro dos objetivos do Kremlin. Uma delas, a de porta-voz do governo russo, de acordo com Thomas Kent, especialista em desinformação, ética jornalística e assuntos russos e professor associado adjunto do Instituto Harriman da Universidade de Columbia.

“Durante décadas, muitos russos tiveram pouca fé nas comunicações do seu próprio governo. Desconfiavam da propaganda soviética, e hoje muitos cidadãos reconhecem que os meios de comunicação russos continuam a manipular a opinião pública em benefício do governo. Por esta razão, os russos tendem a atribuir mais autoridade ao que os estrangeiros dizem”, afirmou ele À Referência.

Um episódio recente no Brasil ilustra essa situação. Após a divulgação do relatório, o site Congresso em Foco noticiou que o PDT (Partido Democrático Trabalhista) havia expulsado, em maio deste ano, 50 de seus membros, “temendo o impacto provocado pela infiltração de membros do movimento de extrema-direita Nova Resistência dentro do partido.”

Posteriormente, tanto a sigla quanto o movimento negaram a existência de infiltrados. Entretanto, é inevitável associar o episódio aos objetivos da rede de desinformação.

“Se os agentes russos conseguirem que os meios de comunicação social ou figuras públicas de outros países ecoem os pontos de vista do Kremlin, eles transmitem isso aos cidadãos russos para reforçar a sua própria autoridade”, afirmou Kent.

Propaganda estatal

O que aflige o Ocidente ainda mais que o fortalecimento doméstico do regime de Putin, no entanto, é o alcance de sua retórica e o consequente aumento da influência global do Kremlin, atualmente focado em dissipar as críticas e difundir argumentos que justifiquem a invasão da Ucrânia.

“A Rússia e o Kremlin encaram as relações entre os países como um jogo de soma zero, enquanto no mundo democrático as vemos como um jogo de soma diferente de zero”, explica Kalenský.

“Com esta mentalidade, tentam tudo o que podem para enfraquecer países que consideram adversários: desestabilizá-los, aumentar as divisões no país, aumentar o potencial de protesto da população, aumentar as linhas divisórias”, diz ele. “E paralisar as organizações internacionais, levando-as à inação: uma ONU (Organização das Nações Unidas) fraca, uma Otan fraca, uma UE fraca não podem resistir eficazmente à agressão da Rússia.”

Tais iniciativas surtem efeito particularmente na África, onde Moscou gradativamente substitui as nações ocidentais como principal parceira dos governos no setor de segurança, no qual a prioridade é a luta contra organizações extremistas islâmicas como Estado Islâmico e Al-Qaeda.

No Níger, palco de um golpe de Estado em julho deste ano, a bipolarização Rússia x França já é realidade, e há muito da desinformação por trás disso. Após a tomada de poder, milhares de apoiadores da junta que assumiu o governo foram às ruas com bandeiras russas, manifestando oposição aos antigos colonizadores. Os militares franceses foram então expulsos, e mercenários russos ligados ao Wagner Group se alinharam às Forças Armadas nigerinas no enfrentamento aos insurgentes, como ocorreu antes no Mali e em Burkina Faso.

Além de fortalecer sua imagem e suas políticas no exterior, Moscou também fortalece nações aliadas. “Através destes esforços de desinformação, tentam aumentar as chances dos atores políticos que são mais amigos da Rússia e prejudicar aqueles que são antirrussos e pró-democráticos”, explica Kalenský.

Tal observação fica muito clara no caso da Nova Resistência, que usa seu site e sua presença das redes sociais para defender não apenas a Rússia, mas também nações e entidades alinhadas como Moscou. O movimento, por exemplo, tem sido bastante ativo na guerra em curso no Oriente Médio, com uma posição anti-Israel e manifestações de apoio ao grupo radical libanês Hezbollah, como o Kremlin.

Sucesso ou fracasso?

Embora os objetivos e o método de atuação estejam bastante claros, é difícil calcular o sucesso de Moscou. “O problema é precisamente o fato de não estarmos medindo isto suficientemente. Então, é fácil descartar os esforços da Rússia como ineficazes”, afirma Kalenský. “Mas o fato de não conhecermos o impacto com precisão, de uma forma quantitativa, não significa que o efeito não exista.”

Ele cita como exemplo o caso das eleições norte-americanas de 2016, alvo de uma campanha russa para beneficiar Donald Trump em detrimento da rival Hilary Clinton. E destaca o trabalho feito pelo consulto especial Robert S. Mueller, que documentou a ação de Moscou no pleito e divulgou em 2019 um relatório de 448 páginas com suas conclusões.

“Isto é provavelmente o mais próximo que temos de uma tentativa de investigar a interferência da Rússia: e a conclusão é que o governo não fez o suficiente. E em quase todos os outros lugares só é pior”, afirma Kalenský. “Considero ultrajante que quase nenhum outro país no mundo tenha investigado adequadamente os ataques de informação da Rússia aos seus processos eleitorais.”

Kent, por sua vez, diz que o fato de a Russia encontrar indivíduos e entidades dispostos a reverberar suas ideias no exterior já pode ser encarado com um sucesso da campanha de propaganda estatal russa.

“Os agentes russos são hábeis em encontrar atores políticos com ideias semelhantes num país-alvo e em fazer causa comum com eles”, diz. “Nas democracias, os atores russos procuram, em particular, se alinhar com atores políticos que se opõem principalmente ao governo e são cínicos quanto ao futuro do país.”

Esta é, segundo Kent, uma forma também de espalhar influência sem precisar investir dinheiro, algo que China e Estados Unidos fazem muito melhor, dadas as condições econômicas favoráveis. Mais uma vez, a crescente presença russa no continente africano vale como modelo de sucesso.

“A Rússia de hoje tem pouca ajuda econômica para oferecer a outros países, ou qualquer ideologia política inspiradora”, afirma. “Portanto, procura principalmente causar desespero e caos nos países democráticos, em vez de apresentar propostas positivas para realmente melhorar a situação do país.”

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