Tentando afastar a Rússia, EUA buscam influência na luta da África Ocidental contra extremistas

Regimes africanos estão escolhendo voluntariamente Moscou como parceiro de segurança, criando uma disputa de influência com Washington na região

Militares dos Estados Unidos que comandam exercícios anuais de contraterrorismo na África Ocidental fizeram um pedido simples aos países costeiros para conter o avanço do extremismo islâmico, que dizimou países como Burkina Faso e Mali: que “confiem uns nos outros”. E, também, que não sigam o exemplo deste último, que escolheu a Rússia como parceira de segurança ao fechar acordo com uma organização paramilitar associada ao Kremlin em 2022. As informações são da agência Reuters.

Com vistas ao aumento da violência de grupos jihadistas na região do Sahel e a expansão das atividades terroristas do Estado Islâmico (EI) e da Al-Qaeda rumo a nações banhadas pelo Atlântico, um grupo de soldados africanos de 29 países participa de um exercício anual de contraterrorismo liderado pelas forças norte-americanas desde o último dia 9. O Flintlock 2023, que irá se estender por mais uma semana, ocorre em Gana e na Costa do Marfim, reunindo mais de mil militares.

Flintlock ocorre em um momento de piora crescente nas relações entre Washington e Moscou por conta do conflito na Ucrânia. Há também o contexto da retirada das forças francesas do Mali e Burkina Faso, que fez Paris enfrentar uma raiva política na África Ocidental devido às suas políticas agressivas em relação à região, favorecendo as intenções do Kremlin no continente.

Soldados das Forças Especiais da Guiné conduzem treinamento de alcance de armas durante o Flintlock 2020, realizado na Mauritânia (Foto: WikiCommons)

Isso porque tal sentimento anti-francês surgiu como uma oportunidade para a Rússia aproveitar a região, mostrando-se como uma alternativa viável de combate ao extremismo islâmico pelas mãos do Wagner Group. Por lá, enquanto a raiva contra o país liderado por Emmanuel Macron continuar fervendo, os mercenários liderados por Yevgeny Prigozhin encontrarão países dispostos a assinar acordos de segurança. 

O Mali, que passou por um golpe militar coordenado pelo coronel Assimi Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país, disse anteriormente que as forças russas que lá atuam não são formadas por mercenários, e sim “treinadores” que ajudam as tropas locais.

“Há governos com tantos problemas que estão começando a procurar outros atores malignos que podem fazer mais uso dos recursos nesses países”, disse à reportagem o coronel Robert Zyla do Comando de Operações Especiais dos EUA na África (Socaf, da sigla em inglês) durante exercícios em Gana. 

Durante as atividades militares em Gana, os treinadores deram orientações às tropas locais para que compartilhem números de telefone com colegas estrangeiros que atuam em fronteiras mal marcadas, muitas vezes a apenas alguns quilômetros de distância. A capacitação também envolveu uso de motocicletas, a exemplo do que fazem os combatentes islâmicos, por sua velocidade e facilidade de executar manobras.

Outro ponto importante da estratégia de treinamento é envolver as comunidades fronteiriças e garantir que os exércitos trabalhem juntos em uma região onde as fronteiras se estendem por centenas de quilômetros de deserto pouco povoado.

Na visão de especialistas, o grande desafio de Gana, uma das nações mais pobres do mundo, é a falta de recursos e compromisso internacional em grande escala com a defesa. Embora o país tenha reforçado as tropas nas regiões do norte, não há drones de reconhecimento para proteger as áreas fronteiriças.

“Logística e equipamentos são essenciais”, disse disse o coronel Richard Kainyi Mensah, chefe de operações da brigada de operações especiais de Gana. “Os recursos são limitados”.

Pirataria e pesca ilegal

Exercícios marítimos também estão em andamento, como mostrou outra reportagem da Reuters. O treinamento no mar, com soldados com água até o pescoço, simulou uma invasão em um resort, que tinha como objetivo resgatar reféns. Altas autoridades militares e diplomatas acompanharam as atividades de perto.

O almirante Milton Sands, comandante do Socaf, disse que o programa se expandiu para ajudar as nações costeiras da região a lidar com ameaças marítimas, como pirataria e pesca ilegal. Operações antipirataria, aliás, são parte importante da capacitação. Entre as autoridades ganenses, há o temor de que os jihadistas trabalhem em colaboração com os navios piratas que agem na região, tornando as águas inseguras e causando imensos problemas para a atividade econômica dos países costeiros.

“Já sabemos que eles têm a intenção de se conectar com a pirataria e aprimorar as operações”, disse o coronel William Nortey do exército de Gana. “Isso seria uma virada de jogo para os Estados litorâneos, então precisamos evitar isso a todo custo”, acrescentou.

Sobre a pesca ilegal, Sands observou que a atividade não apenas roubou da região uma importante fonte de alimento, mas também fomentou outras tipos de crimes, incluindo drogas e tráfico humano.

A pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU, da sigla em inglês) se espalhou ao longo das costas da África Ocidental, consumindo cerca de US$ 9,4 bilhões por ano por meio de fluxos financeiros ilícitos, de acordo com um relatório de 2022 da Financial Transparency Coalition de organizações não governamentais.

Das 10 principais empresas que encontraram envolvidas na pesca IUU na região, oito eram chinesas e um terço de todas as embarcações ostentavam bandeiras chinesas, apontou o documento.

Por que isso importa?

Embora as ações antiterrorismo globais tenham enfraquecido os dois principais grupos jihadistas do mundo, EI e Al-Qaeda, ambos conseguem se manter relevantes e atuantes. A estratégia dessas duas organizações inclui o recrutamento de novos seguidores através da internet e a forte presença em zonas de conflito como a África, onde são representadas por grupos afiliados regionais. O Afeganistão, agora sob o comando do Taleban, também é um porto seguro para muitos jihadistas.

Na África Ocidental, em particular, a violência das organizações jihadistas tem aumentado. Nos últimos três anos, foram registrados mais de 5,3 mil ataques terroristas, com a morte de cerca de 16 mil pessoas. A informação foi divulgada no início de maio deste ano pelo ministro da Defesa de Gana, Dominic Nitiwul, durante reunião de representantes dos países da região.

O continente africano ganhou importância em meio às derrotas impostas às grandes organizações jihadistas em outras regiões, caso do Oriente Médio. Em 2017, o exército iraquiano anunciou a derrota do EI no Iraque, com a retomada de todos os territórios que o grupo dominava desde 2014. O EI, que chegou a controlar um terço do país, hoje mantém por lá apenas células adormecidas que lançam ataques esporádicos. Já as Forças Democráticas Sírias (FDS), apoiadas pelos EUA, anunciaram em 2019 o fim do “califado” criado pelos extremistas do grupo na Síria.

Em fevereiro deste ano, o EI sofreu um duro golpe quando o exército norte-americano anunciou ter matado Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurashi, principal líder da facção. Durante uma operação antiterrorismo dos EUA na Síria, ele explodiu uma bomba que carregava junto ao corpo, matando também mulheres e crianças que o acompanhavam. Já em novembro, o próprio grupo revelou que Abu al-Hassan al-Hashemi al-Qurashi, sucessor de Abu Ibrahim, também foi morto.

No caso da Al-Qaeda, que igualmente mantém facções relevantes na África, a sobrevivência do grupo pode ser explicada também pela tomada de poder pelo Taleban no Afeganistão. “As avaliações dos Estados-Membros até agora sugerem que a Al-Qaeda tem um porto seguro sob o Taleban e maior liberdade de ação”, diz relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) divulgado no final de maio.

“A Al-Qaeda permanece no sul e leste do Afeganistão, onde tem uma presença histórica”, diz o relatório. “O grupo supostamente tem de 180 a 400 combatentes, com as estimativas dos Estados-Membros inclinando-se para o número mais baixo”, prossegue o documento, que cita cidadãos de BangladeshÍndiaMianmar e Paquistão como sendo integrantes da facção.

O ex-líder da organização Ayman al-Zawahri, inclusive, foi morto em território afegão em um ataque das forças armadas dos EUA no dia 1º de agosto .

Anteriormente, a ONU já havia lembrado que a Al-Qaeda chegou a parabenizar publicamente os talibãs pela ascensão ao poder. E alegou que um filho de Bin Laden, Abdallah, visitou o Afeganistão em outubro de 2021 para reuniões com o Taleban.

No Brasil

Casos mostram que o Brasil é um porto seguro para extremistas. Em dezembro de 2013, levantamento do site The Brazil Business indicava a presença de ao menos sete organizações terroristas no Brasil: Al Qaeda, Jihad Media Battalion, Hezbollah, Hamas, Jihad Islâmica, Al-Gama’a Al-Islamiyya e Grupo Combatente Islâmico Marroquino.

Em 2001, uma investigação da revista VEJA mostrou que 20 membros terroristas de Al-Qaeda, Hamas e Hezbollah viviam no país, disseminando propaganda terrorista, coletando dinheiro, recrutando novos membros e planejando atos violentos.

Em 2016, duas semanas antes do início dos Jogos Olímpicos no Rio, a PF prendeu um grupo jihadista islâmico que planejava atentados semelhantes aos dos Jogos de Munique em 1972. Dez suspeitos de serem aliados ao Estado Islâmico foram presos e dois fugiram.

Mais recentemente, em dezembro de 2021, três cidadãos estrangeiros que vivem no Brasil foram adicionados à lista de sanções do Tesouro Norte-americano. Eles são acusados de contribuir para o financiamento da Al-Qaeda, tendo inclusive mantido contato com figuras importantes do grupo terrorista.

Para o tenente-coronel do Exército Brasileiro André Soares, ex-agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o anúncio do Tesouro causa “preocupação enorme”, vez que confirma a presença do país no mapa das organizações terroristas islâmicas.

“A possibilidade de atentados terroristas em solo brasileiro, perpetrados não apenas por grupos extremistas islâmicos, mas também pelo terrorismo internacional, é real”, diz Soares, mestre em operações militares e autor do livro “Ex-Agente Abre a Caixa-Preta da Abin” (editora Escrituras). “O Estado e a sociedade brasileira estão completamente vulneráveis a atentados terroristas internacionais e inclusive domésticos, exatamente em razão da total disfuncionalidade e do colapso da atual estrutura de Inteligência de Estado vigente no país”. Saiba mais.

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